20.12.06

II FORUM CULTURAL MUNDIAL

CONVENÇÃO GLOBAL VOLTA-SE AO MERCADO E ÀS POLÍTICAS OFICIAIS

O II Fórum Cultural Mundial, que aconteceu entre o fim de novembro e começo de dezembro, teve como temas centrais as “Diferentes Palavras” no Rio de Janeiro, e as “Boas Notícias” em Salvador. Sobre as diferentes palavras, diversas entidades cariocas reclamaram da mercantilização e do debate oficial governamental na convenção e da falta de participação da sociedade. Na terra de todos os santos, as boas notícias vieram do popular que hoje ocupa o lugar do erudito; os debates da sociedade civil, no entanto, não foram aprofundados, tendo mais destaque a extensa programação artística, devido à associação ao VII Mercado Cultural.

Carlos Gustavo Yoda – Carta Maior

O Fórum Cultural nasceu em 1998, durante a Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento da UNESCO, em Estocolmo, Suécia, quando se constatou a necessidade de repensar o papel e a situação das Artes e da Cultura em um mundo globalizado. A idéia era a de debater propostas para enfrentar novos desafios como a proteção da diversidade cultural, a economia criativa e a questão dos direitos sobre a propriedade intelectual.

A base da convenção está nos movimentos da sociedade civil, representantes governamentais, instituições, gestores, artistas, intelectuais e agentes culturais. A primeira sede do Fórum foi São Paulo, que recebeu as expressões populares dos quatro cantos do mundo entre 26 de junho e 4 de julho de 2004 (Leia a cobertura completa do I FCM e do II FCM aqui).

Desde 1998, muitas coisas aconteceram com a cultura no mundo. A grande preocupação dos movimentos era o Tratado de Propriedade Intelectual (TRIPs) que fez parte de um pacote de acordos da Organização Mundial do Comércio, em 1994. Depois disso, a sociedade civil conseguiu atingir uma grande vitória, quando foi assinada a Convenção da Unesco sobre a Diversidade Cultural, há um ano. O Brasil, que foi um dos principais articuladores da proposta, ainda não ratificou sua assinatura. O projeto ainda está em trâmite no Congresso, mas deve passar sem grandes conflitos.

Paralelo ao Fórum, no Rio de Janeiro estiveram reunidos cerca de 40 ministros de todo o mundo, que integram a Rede Internacional de Política Cultural. Na pauta central, o debate sobre direitos autorais teve destaque e é consenso a grande preocupação dos gestores da cultura em fortalecer a atuação da Unesco para não ceder às pressões dos Estados Unidos (Leia sobre o assunto). Além disso, a presidência da rede, que estava com o Brasil, passou agora para a Espanha. O grupo nasceu para articular a Convenção da Unesco, ainda em 1998.

Manifesto
O Fórum dos Pontos de Cultura do estado do Rio consideraram necessário manifestar uma posição crítica e de questionamento à forma como foi conduzida a organização do evento. Conforme manifesto divulgado, esta postura dos pontos de cultura reflete um ambiente de
perplexidade e indignação em que se encontram os mais diversos grupos, entidades, artistas e associações culturais da cidade e do estado, que não foram ouvidos, consultados, nem tiveram qualquer interlocução com a organização do evento, seja em sua concepção, convocação ou programação. “A partir dessa análise, consideramos inapropriada a definição deste evento como um fórum, vulgarizando e esvaziando o sentido deste tipo de ação em rede que reúne os mais diversos movimentos sociais Brasil e mundo afora” - consta do manifesto.

As entidades consideram ainda que o evento se orienta por uma lógica de mercado, amparado por uma estratégia promocional e midiática, e organizado conforme os padrões dos grandes festivais e exposições de negócios internacionais, reuniões que se organizam exclusivamente em função de grandes interesses comerciais e econômicos. “Não é esta a lógica de discussão da cultura que nos interessa” - sentencia o documento.

Economia Criativa
Uma das questões mais destacadas da convenção global foi o tema da economia criativa que ganhou base de discussão com o lançamento da inédita pesquisa sobre os números da cultura produzida pelo IBGE. O ministro da Cultura, Gilberto Gil, informou durante a conferência do Rio que seu ministério está se empenhando para transformar em realidade, já nos próximos meses, o Observatório Internacional de Economia da Cultura. A iniciativa, segundo Gil, nasceu “de uma provocação feita pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), em 2004, em São Paulo, e seu funcionamento vem sendo amplamente debatido desde então”.

Esse observatório, de acordo com o ministro, seria um centro de referência da economia criativa, com sede no Brasil, e abrigaria números, estudos, textos, canais interativos, informações, toda sorte de referência, conhecimento sobre o setor. “Já temos levado muito tempo conceituando o que é o conteúdo, o que é a forma dessa instituição e temos que começar a trabalhar. E não há nenhuma ferramenta de trabalho mais interessante hoje em dia do que a ferramenta eletrônica, pela internet”, analisou o ministro, prevendo a melhor formulação do trabalho em rede.

Gil disse ainda que a intenção do ministério, sujeita ainda a aprovações, é de instalar o Observatório Internacional no Centro Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, que é uma instituição internacional recém-criada no Rio de Janeiro (Leia também sobre a discussão de economia criativa em Salvador).

O diretor brasileiro, Augusto Boal, fundador do Teatro do Oprimido afirmou também que não há problemas nas oportunidades de comercialização que se apresentam para a cultura no mundo globalizado, desde que seja preservada a arte da criação. “Cultura pode se transformar em indústria, se inserir na economia, mas desde que o artista seja o criador e o produtor atue a partir da sua criação”.

Ele alertou, no entanto, que na ótica do mercado interessa promover tanto sabão em pó quanto quadros, pois há mercado para isso, mas que não se pode incorrer no erro de confundir "saponáceo" com cultura. “Não tenho nada contra o comércio. Admiro os comerciantes que fazem da sua atividade uma arte, mas tenho pena dos artistas que fazem da sua arte um comércio”, afirmou Boal.

Cidadania Cultural
Gil destacou ainda a necessidade de incorporar saberes tradicionais que fazem parte cultura brasileira, como a capoeira e a culinária, por exemplo, ao universo da educação formal para que esses saberes sejam transmitidos aos mais jovens. Para ele, a falta de reconhecimento das práticas culturais é uma limitação à cidadania plena.

O ministro lembrou mestres capoeiristas, como Bimba e Pastinha, que levaram a capoeira a vários países do mundo difundindo a imagem do Brasil, sem nunca terem recebido apoio governamental para isso. “Desde a escravidão, o Estado brasileiro esteve de costas para os mestres do saber. Isso começa a mudar a partir do momento que incorporamos a noção de cidadania, a sociedade como horizonte final da políticas culturais”, defendeu (leia mais).

O equatoriano Francisco Huerta Montalvo, secretário do Convênio Andrés Bello, entidade cultural com atuação no âmbito da América Latina, ressaltou, também na conferência carioca, o papel da cultura para o exercício da cidadania e para viabilizar a democracia. “Não existe democracia sem cidadania, mas infelizmente, na maior parte dos nossos países, somos apenas habitantes com cédulas de identidade e temos possibilidade de votar, no entanto não existe cidadania sem cultura”. Segundo ele, construir a cidadania com a cultura exige principalmente mudanças drásticas na educação.

Assim como Gil, Montalvo também destacou a identidade como foco no desenvolvimento da arte e da cultura. “Não é só o fator de consumo, mas a capacidade de produzir arte”.

Selo Cultural
Na reunião entre os ministros, ainda entrou em pauta uma questão mais imediata que seria a criação de um “selo cultural” para promover a cooperação, o intercâmbio e a maior facilidade no trânsito aduaneiro de bens culturais, a exemplo do que já foi feito no âmbito do Mercosul. Segundo Gilberto Gil, houve o comprometimento dos presentes quanto à necessidade de serem feitos os estudos para viabilização da iniciativa, “inclusive com as devidas adaptações das respectivas legislações aduaneiras de cada país da Comunidade”. Mas, para o ministro, é possível que o selo seja adotado já em 2007.

Entre outros assuntos discutidos no encontro, a ministra da Cultura de Portugal, Isabel Pires de Lima, destacou como importantes a criação de um Fórum Permanente das Comunidades Lusófonas e a de um fundo, com recursos públicos e privados, para financiar co-produções de cinema e TV.

Futuro
Depois desta segunda edição no Brasil, o Fórum Cultural Mundial deverá ser realizado a cada dois anos em um país diferente. O próximo encontro ainda não tem sede definida. A grande plataforma de debates do FCM é a Convenção Global, um espaço aberto para a reflexão em torno das perspectivas culturais e realidades sociais de todo o mundo, estimulado por painéis, conferências, simpósios, oficinas, e provocações. Na pauta da Convenção, estão questões como Cultura e Cidadania; Economia Criativa; Direitos sobre Propriedade Intelectual e Novas Tecnologias; Direitos Culturais; Cultura para Paz; Culturas e Globalização; Diálogos Sul-Sul; Hegemonia e Diversidade; Cultura e Desenvolvimento; e Democratização das Comunicações.

Além da Convenção Global, ocupam lugar de destaque nas atividades do FCM 2006 os Eventos Associados, que prevêm os seguintes encontros de autoridades e representantes de redes e fundações culturais: o Encontro Mundial de Redes Culturais; o Encontro Anual da Rede Internacional das Políticas Culturais; o Encontro Anual de Ministros da Cultura da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa); o Encontro Internacional de Fundações; o Encontro Anual da Rede Internacional de Diversidade Cultural; e Encontro de Ministros da Cultura do Mercosul.

* com informações da assessoria de imprensa do Fórum e Agência Brasil.

19.12.06

Leandro Gomes de Barros, o Rei Sertanejo

Em seu ITINERÁRIO DE PASÁRGADA, falando sobre “Mario de Andrade e a questão da língua”, nosso grande Manuel Bandeira cita a Peleja de Antônio Batista e Manuel Cabeceira, de Leandro Gomes de Barros:

Fiz Romano atropelar-se
E fiz Germano correr,
Abocanhei Ugolino
Porém não pude morder.

Mas, quem foi Leandro Gomes de Barros?
Vamos deixar a resposta com Carlos Drummond de Andrade, publicada no Jornal do Brasil em 9 de setembro de 1976:

“Em 1913, certamente mal informados, 39 escritores, num total de 173, elegeram por maioria relativa Olavo Bilac príncipe dos poetas brasileiros. Atribuo o resultado a má informação porque o título, a ser concedido, só poderia caber a Leandro Gomes de Barros, nome desconhecido no Rio de Janeiro, local da eleição promovida pela revista FON-FON, mas vastamente popular no Nordeste do País, onde suas obras alcançaram divulgação jamais sonhada pelo autor de “Ouvir Estrelas...”

Então, Leandro Gomes de Barros foi o Príncipe dos Poetas brasileiros? É novamente Drummond quem explica:

“...E aqui desfaço a perplexidade que algum leitor não familiarizado com o assunto estará sentindo ao ver defrontados os nomes de Olavo Bilac e Leandro Gomes de Barros. Um é poeta erudito, produto da cultura urbana e burguesa média; o outro, planta sertaneja vicejando à margem do cangaço, da seca e da pobreza. Aquele tinha livros admirados nas rodas sociais, e os salões o recebiam com flores. Este, espalhava seus versos em folhetos de cordel, de papel ordinário, com xilogravuras toscas, vendidos nas feiras a um público de alpercatas ou de pé no chão.”

“...Não foi príncipe de poetas do asfalto, mas foi, no julgamento do povo, rei da poesia do sertão, e do Brasil em estado puro.”

Então: Leandro Gomes de Barros foi Rei. Foi? Ou É?

Difícil responder, pois Chico Xavier, o famoso médium, psicografou esses versos de Leandro muito, muito tempo depois de sua morte:

1. O comboio para o além
Passa por todo lugar,
Mas a morte não avisa
O dia em que vai passar.

2. Era louca por diamantes
Dona Isa Lindomar
Morreu lamentando as jóias
Que não podia levar.

3. Moda em moça eu não entendo
E nem sei como vai indo...
Decote sempre descendo
E saia sempre subindo.

4. Moda em moça eu não entendo
E nem sei como vai indo...
Decote sempre descendo
E saia sempre subindo.

Leandro Gomes de Barros nasceu em Pombal, Paraíba, no dia 19 de novembro de 1865 e faleceu em Recife, Pernambuco, no dia 4 de março de 1918. Ainda criança, conviveu com violeiros lendários, como Inácio da Catingueira, Ugolino e Nicandro Nunes da Costa, Romano Mãe d’Água, Bernardo Nogueira, etc., etc. que despertaram nele o fascínio pela viola.

Além de poeta - Rei dos Poetas, como disse Drummond - foi um grande editor, levando a Literatura de Cordel aos mais longínquos povoados desse imenso território brasileiro.

Câmara Cascudo nos diz que ele “Viveu exclusivamente de escrever versos populares, inventando desafios entre cantadores, arquitetando romances, narrando as aventuras de Antônio Silvino, comentando fatos, fazendo sátiras. Fecundo e sempre novo, original e espirituoso, é o responsável por 80% dos cantadores atuais. Publicou cerca de mil folhetos, tirando deles dez mil edições. Esse inesgotável manancial correu ininterrupto enquanto Leandro viveu. É ainda o mais lido dos escritores populares. Escreveu para sertanejos e matutos, cantadores, cangaceiros, almocreves, comboieiros, feirantes e vaqueiros. É lido nas feiras, nas fazendas, sob as oiticicas nas horas do “rancho”, no oitão das casas pobres, soletrado com amor e admirado com fanatismo. Seus romances, histórias românticas em versos, são decorados pelos cantadores... Um dia, quando se fizer a colheita do folclores poético, reaparecerá o humilde Leandro Gomes de Barros, vivendo de fazer versos, espalhando uma onda sonora de entusiasmo e de alacridade na face triste do sertão.”

Depois de Bandeira, Mário de Andrade, Drummond, Câmara Cascudo, etc., etc. fico encabulado ao escrever qualquer coisa sobre esse poeta nordestino, esse poeta brasileiro. Portanto, vamos transcrever um romance seu, escolhido ao acaso em sua obra gigantesca e bela:

ANTONIO SILVINO
o rei dos cangaceiros

O povo me chama grande
E como de fato eu sou
Nunca governo venceu-me
Nunca civil me ganhou
Atrás de minha existência
Não foi um só que cansou.

Já fazem 18 anos
Que não posso descansar
Tenho por profissão o crime
Lucro aquilo que tomar,
O governo às vezes dana-se
Porém que jeito há de dar?

O governo diz que paga
Ao homem que me der fim,
Porém por todo dinheiro
Quem se atreve a vir a mim?
Não há um só que se atreva
A ganhar dinheiro assim.

Há homens na nossa terra
Mais ligeiros do que gato,
Porém conhece meu rifle
E sabe como eu me bato,
Puxa uma onça da furna,
Mas não me tira do mato.

Telegrafei ao governo
E ele lá recebeu,
Mandei-lhe dizer: Doutor,
Cuide lá no que for seu,
A capital lhe pertence
Porém o estado é meu.

O padre José Paulino,
Sabe o que ele agora fez?
Prendeu-me dois cangaceiros,
Tinha outro preso fez três,
O governo precisou
Matou tudo de uma vez.

Porém deixe estar o padre,
Eu hei de lhe perguntar
Ele nunca cortou cana
Onde aprendeu a amarrar?
Os cangaceiros morreram
Mas ele tem que os pagar.

Depois ele não se queixe,
Dizendo que eu lhe fiz mal,
Eu chego na casa dele,
Levo-lhe até o missal,
Faço da batina dele
Três mochilas para sal.

Um dos cabras que mataram,
Valia três Ferrabrás
Eu não dava por cem papas,
Nem quinhentos cardeais
Não dava-o por dez mil padres
Pois ele valia mais.

Mas mestre padre entendeu
Que ia acertadamente
Em pegar meus cangaceiros
E fazer deles presente,
Quem tiver pena que chore
Quem gostar fique contente.

Meus cangaceiros morreram
Mas ele morre também,
Eu queimando os pés aqui
Nem mesmo o diabo vem,
Eu não vou criar galinhas
Pra dar capões a ninguém.

Tudo aqui já me conhece
Algum tolo inda peleja,
Eu sou bichão no governo,
Eu sou trunfo na igreja
Porque no lugar que passo
Todo mundo me festeja.

No norte tem quatro estados
À minha disposição,
Pernambuco e Paraíba
Dão-me toda distinção,
Rio Grande e Ceará
Me conhecem por patrão.

No Pilar da Paraíba
Eu fui juiz de direito,
No povoado Sapé,
Fui intendente e prefeito,
E o pessoal dali
Ficou todo satisfeito.

Ali no entroncamento
Eu fui Vigário Geral,
Em santa Rita fui Bispo,
Bem perto da capital,
Só não fui nada em Monteiro
Devido a ser federal.

Porém tirando o Monteiro,
O resto mais todo é meu,
Aquilo eu faço de conta
Que foi meu pai que me deu
O governo mesmo diz:
Zele por tudo que é seu.

Na vila de Batalhão,
Eu servi de advogado,
Lá desmanchei um processo
Que estava bem enrascado,
Livrei três ou quatro presos
Sem responderem jurado.

Só não pude fazer nada
Foi na tal Santa Luzia.
Perdi lá uma eleição,
Mas o velho rifão diz:
Roma não se fez num dia.

O padre José Paulino
Pensa que angu é mingau
Entende que sapo é peixe
E barata é bacurau
Pegue com chove e não molha,
Depois não se meta em pau.

Eu já encontrei um padre,
Recomendado de papa,
Tinha o pescoço de um touro,
Bom cupim para um tapa,
Fomos às unhas e dentes,
Foi ver aquela garapa.

Quando o rechonchudo viu
Que tinha se desgraçado,
Porque meu facão é forte,
Meu braço é muito pesado,
Disse: vôte, miserável,
Abancou logo veado.

Eu gritei-lhe: Padre mestre,
Me ouça em confissão.
Ele respondeu-me: dane-se
Eu lhe deixo a maldição,
Em mim só tinha uma coroa,
Você fez outra a facão.

Eu inda o deixei correr
Por ele ser sacerdote,
Para cobra só faltava
Enroscar-se e dar o bote,
Aonde ele foi vigário,
Quatro levaram chicote.

Foi tanto qu’eu disse a ele:
Padre não seja atrevido
Tire a peneira dos olhos,
Veja que está iludido,
Eu lhe respeito a coroa,
Porém não o pé do ouvido.

O velho padre Custódio,
Usurário, interesseiro,
Amaldiçoava quem desse
Rancho a qualquer cangaceiro,
Enterrou uma fortuna
E eu sonhei com o dinheiro!

Então fui na casa dele,
Disse, padre eu quero entrar,
Sonhei com dinheiro aqui
E preciso o arrancar,
Quero levá-lo na frente
Para o senhor me ensinar.

O padre fez uma cara,
Que só touro agastado,
Jurou por tudo que havia,
Não ter dinheiro enterrado,
Eu lhe disse, padre mestre,
Eu cá também sou passado.

Lance mão do cavador,
E vamos ver logo os cobres,
Esse dinheiro enterrado
Está fazendo falta aos pobres,
Usemos de caridade
Que são sentimentos nobres.

Dez contos de réis em ouro
Achamos lá num surrão,
Três contos de réis em prata
Achou-se noutro caixão,
Eu disse: padre não chore,
Isso é produto do chão.

O padre ficou chorando
Eu disse a ele afinal
Padre mestre este dinheiro
Podia lhe fazer mal
Quando criasse ferrugem
Lhe desgraçava o quintal.

Ajuntei todos os pobres
Que tinham necessidade
Troquei ouro por papel
Haja esmola em quantidade
Não ficou pobre com fome
Ali naquela cidade.

O padre José Paulino
Acha que estou descansado
Queria fazer presente
Ao governo do Estado
Deu três cangaceiros meus
Sem nada lhe ter custado.

Um desses ditos rapazes
Estava até tuberculoso
O segundo era um asmático
O terceiro era um leproso
O urubu que o comeu
Deve estar bem receoso.

Tive nos meus cangaceiros
Um prejuízo danado
Primeiro foi Rio-Preto,
Segundo Pilão-Deitado,
Os homens mais destemidos
Que tinham me acompanhado.

Eu juro pelo meu rifle,
Que o Padre José Paulino
Cai sempre na ratoeira
E paga o grosso e o fino,
Não há de casar mais homem,
Nem batizar mais menino.

Eu sempre gostei de padre
Tenho agora desgostado
Padre querer intervir
Em negócio do Estado?!...
Viaja sem o missal,
Mas leva o rifle encostado.

Em vez de estudar o meio
Para nos aconselhar,
Só quer saber com acerto
Armar rifle e atirar,
Lá onde ele ordenou-se,
Só lhe ensinaram a brigar.

Depois ele não se queixe,
Nem diga que sou malvado,
Ele nunca assentou praça
Como pode ser soltado?
Não tem razão de queixar-se,
Se tiver mau resultado.

Quatro estados reunidos
Tratam de me perseguir,
Julgam que não devo ter
O direito de existir,
Porém enquanto houver mato,
Eu posso me escapulir.

Eu ganhando essas serras,
Não temo alguém me pegar
Ainda sendo um que pegue,
Uma piaba no mar,
Um veado em mata virgem
E uma mosca no ar.

Eu já sei como se passa
Cinco dias sem comer,
Quatro noites sem dormir,
Um mês sem água beber,
Conheço as furnas onde durmo
Uma noite se chover.

Uma semana de fome,
Não me faz precipitar,
Mato cinco ou seis calangos
Quatro ou cinco lagartixas,
Dão muito bem um jantar.

Eu passei mais de um mês
Numa montanha escondido,
Um rapaz meu companheiro
Foi pela onça comido.
Por essa também
Eu fui muito perseguido.

Era um lugar esquisito,
Nem passarinho cantava!...
Apenas à meia noite
Uma coruja piava,
Então uma grande onça,
De mim não se descuidava.

Havia muitos mocós,
Eu não podia os matar,
Andava tropa na serra
Dia e noite a me caçar,
No estampido do tiro
Era fácil alguém me achar.

Passava-se uma semana
Que nada ali eu comia,
Eu matava algum calango
Que por perto aparecia
Botava-os na pedra quente
Quando secava eu comia.

Quando apertava-me a sede
Pegava a coroa-de-frade
Tirava o miolo dela
Chupava aquela umidade.
Lá eu conheci o peso
Da mão da necessidade.

Um dia que a tropa andava
Na serra me procurando
Viram que um grande tigre,
Estava em frente os emboscando
Um dos oficiais disse:
Estamos nos arriscando.

E o Antonio Silvino
Não anda neste lugar,
Se ele andasse, aquela onça
Havia de se espantar,
Eu estava perto deles,
Ouvindo tudo falar.

Ali desceu toda a tropa,
Não demoraram um momento,
Um soldado que trazia
Um saco de mantimento,
Por minha felicidade
Deixou-o por esquecimento.

Eu estava dentro do mato,
Vi quando a tropa desceu
O tigre soltou um urro,
Que o tenente estremeceu
Até a borracha d’água
Um dos praças perdeu.

Quando eu vi que a tropa ia
Já numa grande lonjura,
Fui, apanhei a mochila,
Achei carne e rapadura,
Farinha queijo e café,
Aí chegou-me a fartura.

Achei a borracha d’água
Matei a sede que tinha,
A carne já estava assada,
Fiz um pirão de farinha
Enchi a barriga e disse:
Deus te dê fortuna, oncinha.

Porque a tua presença,
Fez toda a força ir embora,
O ronco que tu soltaste
Encheu-me a barriga agora,
Eu com a sede que estava
Não durava meia hora.

E é agora o que faço,
Havendo perseguição,
Procuro uma gruta assim
E lá faço habitação,
Só levo lá, um dos rifles
E o saco de munição.

Me mudo para uma furna
Que ninguém sabe onde é,
A furna tem meia légua
Marcando de vante a ré,
A onça chega na boca
Mas dentro não põe o pé.

A onça conhece a furna,
Desde a entrada à saída
Porém qual é essa fera
Que não tem amor à vida?
Uma onça parte assim,
Se vendo quase perdida!...

Quando eu deixar de existir
Ninguém fica em meu lugar,
Ainda que eu deixe filho,
Ele não pode ficar,
Porque a um pai como eu
Filho não pode puxar.

Pode ter muita coragem
Ser bem ligeiro e valente,
Mas vamos ver se suporta
Passar três dias doente,
Com sede de estalar beiço,
E fome de serrar dente.

Se não tiver natureza
De comer calango cru,
Passar um mês sem beber água
Chupando mandacaru,
Dormir em furna de pedra
Onde só veja tatu.

Não podendo fazer isso,
Não pense em ser cangaceiro,
Que é como um cavalo magro
Quando cai no atoleiro,
Ou um boi estropiado
Perseguido do vaqueiro.

Há de ouvir como cachorro,
Ter faro como veado,
Ser mais sutil do que onça,
Maldoso e desconfiado,
Respeitar bem as famílias,
Comer com muito cuidado.

Andar em qualquer lugar
Como quem está no perigo,
Se for chefe de algum grupo
Ninguém dormirá consigo.
O próprio irmão que tiver,
O tenha como inimigo.

O cangaceiro sagaz
Não se confia em ninguém,
Não diz para onde vai,
Nem ao próprio pai se tem,
Se exercitar bem nas armas,
Pular muito e correr bem.

Eu meu grupo tem entrado
Cabra de muita coragem,
Mas acha logo o perigo
E encontra a desvantagem
Foge no meio do caminho,
Não bota o meio da viagem.

Porque andar vinte légua
Isso não é brincadeira,
E romper mato fechado,
Subir por pedra e ladeira,
Como eu já tenho feito,
Não é lá coisa maneira.

Pegar cobra como eu pego
Quando ela quer me morder,
Cascavel com sete palmos,
Só se Deus me proteger,
Mas eu pego quatro ou cinco
E solto-a, deixo-a viver.

Que é pra ela saber,
Que só eu posso ser duro,
Eu já conheço o passado,
Nele ficarei seguro,
Penso depois no presente,
Previno logo o futuro.

Este é Leandro Gomes de Barros, brasileiro e poeta, que deixou a nós uma herança tão grande que não cabe num agradecimento. A ele pedimos a benção e, dedilhando a viola, soltando nossa voz para louvá-lo, louvamos também a toda essa Brava Gente Brasileira.

Autor: Yassir Chediak

13.12.06

ERUDITO X POPULAR

TRADIÇÕES PROCURAM ESCAPAR DO RÓTULO ELITISTA DO FOLCLORE

Para o II Fórum Cultural Mundial e o VII Mercado Cultural, realizados em Salvador no início de dezembro, o popular é erudito, pois está recheado de sabedoria. Por isso, a Fundação Gregório de Matos organizou dentro da programação dos eventos os Encontros de Culturas Eruditas, reunindo recitais, os tambores do Candomblé, flautas, piano, e até dança de rua.

Carlos Gustavo Yoda – Carta Maior

SALVADOR - No estudo das culturas, a música erudita é sinônimo de clássico. Os dicionários musicais costumam definir a música erudita em três pontos: a música "séria" em oposição à música popular, música folclórica, música ligeira ou de jazz; qualquer música em que a atração estética resida principalmente na clareza, no equilíbrio, na austeridade e na objetividade da estrutura formal, em lugar da subjetividade, do emocionalismo exagerado ou da falta de limites de linguagem musical; e a terceira é dizer que seria a música feita durante o período de 1750 a 1830, em especial a de Haydn, Mozart e Beethoven.

Definições e regras musicistas à parte, partindo da análise etimológica da palavra erudito, compreenderemos que a expressão corresponde àquele que recebeu instrução, o conhecedor, o sábio. Assim sendo, onde se encaixam os tantos mestres da cultura que muitas vezes sem saber ler ou escrever constituem a formação tão vasta e desconhecida das tradições orais brasileiras?

Para o II Fórum Cultural Mundial e o VII Mercado Cultural, realizados em Salvador no início de dezembro, o popular é erudito, pois está recheado de sabedoria. Por isso, a Fundação Gregório de Matos organizou dentro da programação dos eventos os Encontros de Culturas Eruditas, reunindo recitais, os tambores do Candomblé, flautas, piano, e até dança de rua.

Segundo o presidente da Fundação, Paulo Costa Lima, o objetivo é procurar um conceito de erudição que subverta a visão elitista sobre o termo. “Precisamos preservar e difundir todos os tipos de saberes. Assim, buscamos o reconhecimento dos mestres das culturas populares. Há uma diferença entre conhecimento e sabedoria. Mas a sabedoria também é uma erudição”, explica.

O músico e pesquisador paraibano radicado em Alagoas, Naldinho, considera errôneo o termo “culturas populares”. Ele prefere trabalhar com o conceito de “tradição oral”, justamente para incluir essas expressões no universo erudito. Naldinho, que lançou no Mercado Cultural o disco Raízes, experimentando os batuques nordestinos, diz que já passou da hora dessas tradições encontrarem o devido reconhecimento artístico.

Boas Notícias
Desse princípio, nasce também o tema do Fórum de Salvador. As Boas Notícias, que atracaram na capital da Bahia, revelaram um novo momento para a cultura e para o debate de suas políticas públicas. Um reflexo reconhecido em todos os espaços do Fórum como resultado do processo natural da produção artística aliada ao pensamento de Gil no MinC, revelando e incentivando as culturas populares, ao invés de incentivar a mal chamada e elitizada cultura erudita.

Nas ruas e espaços do evento em Salvador, isso ficou claro. O Terreiro da Casa Branca, o mais antigo templo afro-descendente das Américas, foi um dos lugares que abrigou toda essa diversidade. Os alabês do Ilê Fun Fun fizeram todas as saudações do Candomblé, no país onde, antes do historiador Jaime Sodré, o que não era cristão era visto como seita.

Sodré lançou durante o Mercado uma pesquisa sobre a influência da religião afro-brasileira na obra escultórica de Mestre Didi. Ele entende que o meio acadêmico tem uma visão distorcida das produções populares, ainda mais a negra. “A universidade pensa essa arte como folclore. Precisamos reverter essa visão simplista e elitizada”.

Canibalismo
Naldinho, em entrevista à Carta Maior, lembrou de um causo ocorrido em Maceió. Mestre Verdilinho foi convidado a participar de um debate sobre a preservação das tradições orais e um antropólogo que estuda no exterior comporia a mesa com ele. O vôo do antropólogo atrasou e Mestre Verdilinho teve de esperar mais de uma hora até o acadêmico chegar: “O antropólogo foi o primeiro a falar e tratou da cultura com tanta propriedade que quando chegou a vez do velho mestre, Verdilinho recusou-se a falar ou a tocar seu pandeiro. Apenas deu seu pandeiro ao ‘doutor’ e pediu para ele fazer um coco alagoano. E o ‘doutor’ ficou em silêncio vendo o mestre sair da sala sob os aplausos”.

Naldinho narra a história para exemplificar dois graves problemas de exploração que sofrem as tradições: o canibalismo e a espetacularização. “Essas coisas acontecem tanto do meio acadêmico, que simplesmente explora as expressões e os saberes sem devolvê-los às comunidades, quanto de músicos que não regionais que transformam tudo em um espetáculo para ser comercializado, através da mídia, com uma visão preconceituosa”, conclui o músico.

12.12.06

CULTURA: O DNA DO INTANGÍVEL

ECONOMIA CRIATIVA APONTA CAMINHOS PARA DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Com a produção e acúmulo de riquezas intangíveis no lugar de bens materiais, a cultura pode desempenhar o papel de condutora de um processo de real desenvolvimento e não apenas de crescimento.

Quando, em 1958, John Kenneth Galbraith, estudioso economista do capitalismo americano, profetizou que, em um futuro não muito distante, o motor da economia seria a produção e o consumo de bens culturais, poucos foram os que deram a atenção devida ao assunto. Galbraith já acrescentava que o sistema de distribuição seria excludente e divisor da sociedade, tanto entre aqueles que teriam o acesso ao consumo desses bens, quanto aos países e indústrias que centralizariam a produção e, principalmente, a distribuição das produções.

O rumo seria, portanto, o da crescente acumulação de riquezas intangíveis, produtos da engenhosidade e criatividade humana. Essa capacidade do homem da criação do e sobre o nada, ou quase nada, a partir da sua inter-relação com o outro é o que supera a antiga visão das indústrias de consumo baseada na produção a partir de bens materiais esgotáveis ou das linhas de trabalho com mão-de-obra barata.

Hoje, é inegável que a chamada economia criativa representa o futuro. Um futuro presente. Não é à toa que os principais produtos da pauta de exportação dos Estados Unidos advêm da indústria cultural e dos signos e valores criados na propriedade intelectual, patrimônios imateriais.

Estimativas da Organização das Nações Unidas apontam a cultura como responsável por 7% do produto mundial bruto, com movimento financeiro de US$ 1,3 trilhão. Em razão de lhe ser atribuída uma expansão de 10% ao ano, muito superior à medida da economia global. O novo setor baseado na criatividade, ainda sem definição precisa, compreende desde o artesanato aos diferentes produtos artísticos e às novas tecnologias, como programas de informática.

“Poderíamos chamá-la de ‘a riqueza dos pobres’, a fim de mostrar precisamente que, em matéria de cultura e arte, os que chamamos de pobres – os jazzistas de New Orleans e do Mississipi, os guajiros cubanos inventores do son, os compositores dos morros cariocas que vendiam seus sambas a dez mil réis para cantores de rádio – eram os verdadeiros milionários a esbanjar talento, a desperdiçar a beleza em troca de alguns tostões para sobreviverem e não serem obrigados a lavar automóveis, conforme aconteceu com Cartola até ser redescoberto”, afirma Rubens Ricupero no prefácio do livro recém-lançado de Ana Carla Fonseca Reis, Economia da Cultura e Desenvolvimento Sustentável – O Caleidoscópio da Cultura.

Francisco Simplício, coordenador do Programa de Economia Criativa do Sul-Sul da Onu, em debate no II Fórum Cultural Mundial, em associação ao VII Mercado Cultural, realizado entre 1º e 4 de dezembro em Salvador, afirma que apenas as leis do mercado não garantem o desenvolvimento. Ou seja, a cultura não pode tornar-se refém do livre comércio. É necessário um amplo plano de políticas públicas que pensem a sustentabilidade da mesma maneira que deveríamos pensar o meio ambiente.

Hoje, apenas cinco países controlam 60% do mercado cultural. Em outros setores, esse monopólio não existe. A América Latina e a África, com toda a diversidade que possuem, não somam 4% de movimentação nesse restrito mercado. “A sociedade civil tem um papel essencial no processo de mobilização e transição entre os governos e as políticas”, pontua Simplório.

Membro da coordenação do Fórum, Paulo Miguez, que dirige o Instituto de Pesquisas Internacional de Economias Criativas, criado no ano passado pelo MinC, reforça a idéia de que existe uma profunda mudança rota na economia: “As chaminés estão sendo substituídas pela cultura e pela comunicação. O combate econômico tem de ser travado pela cultura. E é pela economia que mudaremos essa cultura de consumo”.

CONCENTRAÇÃO
Ana Carla Fonseca Reis, em entrevista à Carta Maior, disse que a concentração do mercado é o grande problema. Ela lembra que 80% das salas de cinema do mundo estão nas mãos das empresas de Hollywood. “É essa a escolha que nós temos? Se não sabemos que existem outras coisas então não temos liberdade nenhuma de escolha”.

Outro fator relevante para o debate da economia criativa destacado por Ana Carla é que a cultura é um bem de consumo insaciável. Sendo um filão de negócios que não se encerra. Quanto mais as pessoas adquirem cultura mais elas querem. É diferente de comprar comida, quando se consome apenas o necessário.

“Não quero tratar cultura como mera mercadoria. Querendo ou não, vivemos em uma sociedade capitalista. Podemos nos aproveitar disso e dizer para os governos e empresas investirem na cultura e que existam políticas para regular tudo isso, garantindo diversidade e a não concentração em oligopólios. Só há liberdade se houver acesso à produção, à distribuição e ao consumo”, declara a representante do Instituto Pensarte.

“A grande lição do desenvolvimento sustentável também não é tornar as pessoas mais gordas. O objetivo é prepará-las a participar da comunidade, libertá-las para além da fome”, define Paulo Miguez.

Lala Deheinzelin, artista e produtora cultural, destaca que todos os problemas são culturais na sociedade contemporânea. Os que não são culturais são decorrentes da cultura: “O que veio primeiro, a cultura ou o desenvolvimento? A cultura é o DNA do intangível. Toda mudança e transformação é cultural. Assim nasce o paradigma do desenvolvimento, ao invés do crescimento econômico”.

Recente pesquisa do IBGE mostra que famílias brasileiras consomem mais cultura do que diversos outros bens. Isso reforça a necessidade de uma melhor atenção para a indústria criativa e maior orçamento para o Ministério da Cultura (leia mais).

Carlos Gustavo Yoda – Carta Maior

1.12.06

Orquestra de Uberaba e a Associação Cultural Antenógenes Silva

LANÇADA EM 23 DE OUTUBRO DE 2001, COM UM PÚBLICO DE APROXIMADAMENTE MIL PESSOAS, SUPERLOTANDO A SALA DE APRESENTAÇÕES E DEPENDÊNCIAS EXTERNAS DO ANFITEATRO CECÍLIA PALMÉRIO, A ORQUESTRA DE UBERABA NÃO EMPLACOU 2002 EM VIRTUDE DE DIFICULDADES FINANCERIAS PARA SUA MANUTENÇÃO.

Meus compadres e minhas comadres.

Estamos em compasso de espera, aguardando aprovação do projeto que enviamos à Secretaria de Estado da Cultura, onde pleiteamos nosso cadastramento na Lei de Incentivo à Cultura do Estado de Minas Gerais para viabilizar, novamente, a nossa sempre sonhada Orquestra de Uberaba.

Depois da fase de cadastramento daremos início à mais uma peregrinação buscando alavancar recursos junto às empresas privadas para a manutenção desse tão importante organismo para a nossa cultura.
Os futuros patrocinadores abaterão no ICMS a ser pago ao Estado os recursos destinados à Orquestra que oferecerá uma contrapartida na mesma proporção ao orçamento de seu projeto.

O projeto para funcionamento da Orquestra de Uberaba destaca-se pelo seu compromisso com as causas sociais e pretende, atendendo a demanda artística da periferia da cidade - verdadeiro celeiro de talentos musicais - ministrar aulas de instrumentos sob responsabilidade dos integrantes da Orquestra, e estes, por outro lado, serão também orientados por profissionais de reconhecidos méritos e trabalhos relevantes dentro da magistratura musical.

Quando do lançamento da Orquestra em 2001 pude fazer um pronunciamento ao público reconhecendo-o como nosso maior parceiro tamanha a receptividade e reciprocidade. Contamos na oportunidade com apoios culturais expressivos como os da Bell Soft e Fundação Cultural de Uberaba.

Há que se destacar também o envolvimento de setores organizados e representativos que além de estarem presentes para expressarem seu apoio participaram de todo o processo de implantação da orquestra numa cumplicidade sem par na história cultural de Uberaba.

O primeiro concerto da Orquestra de Uberaba teve destaque amplo na imprensa local e inclusive transmissão pela TV, o que nos confirmou ser a Orquestra um sonho de todos nós.

Recebemos, durante este pouco tempo de atividades, convites para apresentações em Belo Horizonte, Ouro Preto, Mariana e São João Del Rey e nos fizemos presentes no SESC de Ribeirão Preto em uma apresentação memorável juntos com o grupo de percussão da periferia de Uberaba,“Os Tribais”.


NOVOS DESAFIOS

Agora, com a compra do Cine Vera Cruz pela Prefeitura Municipal de Uberaba e com sua transformação em Teatro Municipal Vera Cruz a comunidade artística e cultural da cidade está sendo chamada a novos desafios.

Todos sabemos o que significa para uma cidade ter seu teatro municipal, com instalações amplas capaz de receber um público de mais de mil pessoas. A produção local tem que se fazer presente, aprimorando-se, buscando incansavelmente, e cada vez mais, atingir os melhores índices técnicos e estando sempre se superando.

Ainda somos muito deficientes quando o assunto é obtenção de recursos para nossas produções ou ações culturais, principalmente quando se trata de elaboração de projetos, sejam eles para a Lei de Incentivo do Estado, Lei Rouanet e similares.

A necessidade em se comprometer a crescer técnica e artísticamente e poder mostrar sempre ao nosso público um trabalho cada vez mais elaborado nos fará contribuir para o aprimoramento não somente nosso, enquanto artistas e agentes culturais, mas também desse público, e esse, com um grau de exigência maior - impulsionado também pelas produções vindas dos grandes centros já que agora temos um teatro a altura de recebe-las – nos forçará a estarmos sempre numa ascendente, buscando sempre a atualização de conteúdos, de conceitos, técnicas e valores artísticos e culturais.

Sob essa imposição da nova realidade que Uberaba busca para a área cultural é que estão arraigadas as propostas para nossa Orquestra. Não quero mais falar da necessidade de termos uma orquestra porque isso já cansou! Quero dizer que em cima dos seguintes questionamentos estamos norteando nossa ação na busca de um organismo cultural alto-sustentável e que não sofra retrocessos.

1. Como buscar a excelência operacional em todos nossos setores?
2. Como fazer para que todos nossos músicos cresçam e se tornem cada vez mais aptos a contribuir para termos uma orquestra de ponta e a altura do que nossa cidade exige?
3. Como fazer para elaborar projetos para as leis de incentivo e não correr o risco de não serem aprovados?
4. Como fazer para que nossa captação de recursos seja eficiente?

A primeira iniciativa que adotamos foi enviar um projeto para a Lei do ICMS, de Minas Gerais, que na ausência de uma entidade para sua proposição acabou sendo feita no âmbito da pessoa física.

O segundo passo foi criar uma pessoa jurídica que pudesse cumprir o papel de gerir nossas atividades.

Já tínhamos uma associação fundada na década de 80, fruto das discussões travadas no interior dos três festivais de verão, realizados em Uberaba nos anos de 86, 87 e 88. Em total inatividade desde a extinção do Festival de Verão, sócios fundadores da Associação Profissional dos Artistas - APA se reuniram recentemente e transformaram-na em ACUAS - Associação Cultural Antenógenes Silva.

Seu lançamento ao público será no dia 23 de dezembro, às 20:30h, no T.E.U., com uma apresentação da Orquestra de Uberaba onde atuarei como solista, apresentando um trabalho de cultura popular entitulado “TRAVESSIA” com rabeca, poesias caboclas, literatura de cordel e causos.

Será através da ACUAS e da Orquestra de Uberaba que atingiremos nossa excelência operacional. Nosso intuito nesse primeiro momento é aparelhar nossos músicos cada vez mais e revelar novos talentos para nossa orquestra sem nunca abandonar o ideal de sermos uma orquestra de primeira linha, capaz de levar o nome de Uberaba para dentro das agendas culturais do Brasil.

Para tanto, nosso projeto aponta para a vinda de professores notadamente capacitados para a formação técnica e artística de nossos músicos, que além das atividades da Orquestra terão a oportunidade de estarem ministrando aulas para jovens carentes na busca de novos talentos. Isso faz da Orquestra de Uberaba uma orquestra cidadã e faz que sua alto-sustentabilidade esteja comprometida e entrelaçada a ação social que se propõe.

Um outro aspecto que buscamos é poder também aparelhar nossos futuros profissionais da área de projetos, marketing, produção e captação.

Uma das primeiras atividades da ACUAS será trazer a Uberaba profissionais do Estado, do Governo Federal e de outras ongs para nos auxiliar em nosso aperfeiçoamento no sentido de nos tornarmos cada vez mais eficazes na elaboração e agenciamento de projetos. Essas atividades serão abertas a toda comunidade. Necessitamos deste aparelhamento para, inclusive, estarmos capacitados a capacitar a parcela do empresariado que desconhece as vantagens das leis de renúncia fiscal.

Nossa ação está galgada na obtenção de recursos junto às empresas privadas e através de parcerias com o poder público como as que já estão ocorrendo com a Fundação Cultural de Uberaba e outras entidades de natureza congênere à nossa.

Temos potencial e vontades incalculáveis para atingirmos nossas metas e as contribuições do nosso projeto encontram apoio no desenvolvimento da atividade musical e começam, portanto, pela sua conceituação básica, passam pela administração e produção profissionalizadas, pela adoção de estratégias de marketing e terminam com a estruturação de uma identidade para a ACUAS – Associação Cultural Antenógenes Silva, enquanto mantenedora da Orquestra de Uberaba não só perante o público, mas principalmente na concretização de uma atividade que busca a inovação artística e a excelência operacional.

15.11.06

O BELGA QUE ADOTOU RIBEIRÃO


Ele vai fazer trinta anos de Ribeirão Preto. Já tem mais tempo de Brasil do que em sua terra natal, a distante e gelada Bélgica. Padre Francisco Vannerom, ou simplesmente padre Chicão, adotou Ribeirão Preto no coração e na alma. Rejeita, terminantemente, a idéia de partir. Diz, com convicção, que veio para ficar.
Para viver ao lado dos pobres, lutando suas lutas, festejando suas alegrias, chorando suas dores.
Franciscus Hendrikus Dora Rita Vannerom nasceu em Bruxelas, a 16 de agosto de 1948, filho do belga Josephus e da holandesa Elisabeth Maria. O pai foi artesão na juventude, depois atuou no serviço de alfândega e por fim fez carreira militar. Prisioneiro dos alemães, passou parte da 2ª Guerra confinado em uma fazenda, sendo alimentado com a mesma comida dos porcos – lavagem.
Com o fim da guerra, os aliados ganham o direito de estacionar tropas na Alemanha, e lá se vai a família com os filhos Francisco e Ria. Dos três aos dez anos, Francisco vive em Siegen, perto de Colônia – lá perde a mãe, vítima de câncer, quando tinha nove anos.
Um ano depois, o pai volta a se casar, com a viúva de um primo. Padre Chico não gosta da palavra madrasta, prefere segunda mãe – Georgette tem hoje 86 anos e mora perto de Bruxelas.
O pai, às voltas com problemas pulmonares, decorrentes do confinamento na guerra, consegue transferência para Bruxelas. Lá Francisco estuda até concluir o ensino médio.

PROFISSÃO
Entre os 16, 17 anos, o sonho pessoal era ser jornalista. Já o pai tentava convencê-lo a cursar engenharia. A segunda mãe, uma católica devota, gostaria de oferecer o filho à Igreja.
No movimento de escoteiros, Francisco conhece um seminarista que estava prestes a iniciar uma missão – trabalhar com os pigmeus, povo do Congo, ex-colônia belga na África. Desperta, então, para uma questão: “por que não eu?”
O primeiro seminário que conhece, onde o sistema de formação se baseava no isolamento do mundo externo, não o atrai. Mas trava então contato com outros seminaristas, de um instituto que formava padres seculares europeus para a América Latina, continente que sofria com o reduzido número de sacerdotes. São padres seculares missionários – no latim, fidei donum (doados pela fé).
Vai então para a cidade universitária de Louvaine, onde estuda oito anos (teologia, filosofia e história).
A 5 de maio de 1973 é ordenado padre, na Igreja de Meise, cidadezinha de 8.500 habitantes a 11 km de Bruxelas – onde ainda hoje mora sua mãe. O primeiro posto é na Paróquia de Strombeek-Bever, cidade de 14.000 moradores a seis quilômetros da capital da Bélgica. Após dois anos, toma uma decisão sem volta – quer ser um missionário na América Latina. Recebe todo o apoio da mãe Georgette. “A alegria foi maior que a dor da separação”, recorda.

ESCOLHAS
- Quis ser um missionário, acho que um pouco foi pelo espírito aventureiro natural da juventude. A escolha da América Latina também tem explicação – o continente passava por um momento de transformação social, havia tido a revolução cubana, o idealismo de Che Guevara, clérigos mártires como o colombiano Camilo Torres. Na América Latina, quis o Brasil, já conhecia padres que estavam aqui e passavam férias de 3 em 3 anos na Europa e sabia da fama dos brasileiros, de festivos, alegres, comunicativos. E Ribeirão Preto porque aqui já estavam três padres belgas – Carlos, Paulo e Estevão, conta.

O CHOQUE
Foram 21 dias num navio cargueiro. Em 1° de abril de 1977 aportou no Rio de Janeiro, desembarcou dois dias depois em Santos e em 4 de abril chegou a Ribeirão Preto, vindo de São Paulo em uma perua Kombi.
- A primeira coisa que pensei ao chegar aqui foi – que calor! A segunda – será que vou ter de enfrentar feijão duas vezes por dia? (Na Bélgica, comia sopa de feijão de vez em quando, e só no inverno). Terceira coisa que eu pensei – que povo barulhento! O povo ficava nas ruas até à noite, eu nunca tinha visto um boteco aberto para a rua, lá na Bélgica eles eram fechados. Até na Igreja, antes de fazer o sinal da cruz, as pessoas conversavam! Na Bélgica, faz-se o mais completo silêncio, compara.

SANTA TEREZINHA
Padre Chico foi trabalhar na Paróquia Santa Terezinha e desde então está sempre ao lado de quem precisa – que ele chama de “irmãos e irmãs socialmente excluídos”.
Atuou na Capela Nossa Senhora do Rosário, no Morro do Cipó; na capela de Santa Rita das Palmeiras, então zona rural.
- Lá tive minha primeira decepção como europeu. Ninguém, do poder público e da igreja, quis nos ajudar a reformar a capelinha, que estava quase desmoronando e apresentava perigo de vida para as crianças. Então apanhei um martelo, fizemos um mutirão e demolimos a capela, que tinha grande valor histórico.
Atuou na Igreja de Santa Rita de Cássia, no Jardim Independência. Tem muita saudade da Igreja Deus é Amor, na Vila Carvalho, então maior foco de violência da cidade. Lá, teve entreveros com a polícia, quando acusava sem provas ou prendia sem mandados. Com recursos vindos da Europa, acabou com uma favela, erguendo 52 casas em regime de mutirão, ao longo de três anos.
Depois, no Parque Industrial Tanquinho, atuou na capela Jesus Semeador. No início dos anos 80, surge o Quintino I e o Parque Industrial Avelino Alves Palma. Logo depois, o Quintino II, o Simioni e o Avelino Alves Palma, todos dentro da área da Paróquia de Santa Terezinha.
Junto com um padre recém-ordenado, ajuda a organizar sete CEB’s - Comunidades Eclesiais de Base - hoje todas são igrejas, e formam juntas a Paróquia Jesus de Belém.

PÁROCO
Em 1988, padre Paulo retorna para a Bélgica e Chico assume como pároco. São tempos de novos desafios. Dom Arnaldo Ribeiro assume como arcebispo e incentiva a ação diocesana de padre Chico, que coordena todas as pastorais sociais. Atua no Cedhep - Centro de Direitos Humanos e Educação Popular. Coordena as Campanhas da Fraternidade, promovendo caminhadas de jovens da Catedral até o Teatro de Arena, no Morro de São Bento – com dom Arnaldo indo a pé, no meio da multidão. De uma das campanhas, contra o desemprego, em 1999, nasce a ong Crescer-Crédito Solidário, que opera com microempréstimos. No Jubileu de Juventude, em 2000, conseguiu reunir 5.000 jovens católicos em Batatais.

TERRA
Atualmente, além de vigário na Paróquia de Santa Terezinha, padre Chico é assessor da Comissão Pastoral da Terra. Atua nos assentamentos Sepé-Tiaraju, em Serrana, e Mário Lago/fazenda da Barra, em Ribeirão Preto. E há 17 anos dirige a Ong Sonho Real, um núcleo assistencial e promocional localizado no Tanquinho e que atende 55 crianças de três a seis anos, de famílias carentes.
Aos 58 anos, padre Chico se diz realizado.
- Já tenho mais tempo de Brasil do que de Bélgica. Foram 7 anos na Alemanha, 21 na Bélgica e quase 30 de Brasil. Encontrei aqui em Ribeirão Preto o espaço para realizar meu objetivo de vida – me colocar a serviço dos irmãos e irmãs socialmente excluídos.
Voltar para a Bélgica, só a passeio, em visitas familiares, de três em três anos – chegou da última em agosto.
- E minha mãe já fez onze viagens ao Brasil, para temporadas de até quatro meses. Mas lá me sinto como um peixe fora d’água. A igreja não é mais a mesma de minha juventude e a sociedade é tão altamente tecnológica e competitiva que me sinto burro. E além do mais, não tem mais boteco, explica padre Chico que, como um legítimo belga, é um admirador de uma boa cerveja.

Escrito por NICOLA TORNATORE
Foto: MATHEUS URENHA
Estraído do Jornal A Cidade

ENTREVISTA COM PADRE CHICO

Meus compadres e minhas comadres.
Conheçam um pouco do pensamento desse nosso grande amigo e companheiro, Pe. Chico, através de uma entrevista que concedeu ao site da Arquidiocese.

1. Como você analisa o resultado dessas eleições 2006?

Em primeiro lugar gostaria de alertar contra o perigo de conclusões unilaterais. Com isso quero dizer três coisas:

1. me parece que não podemos considerar os vencedores como totalmente vitoriosos e nem os derrotados como se tivessem só perdido;

2. deve-se levar em conta que existem nos resultados obtidos claras diferenças conforme região e Estado;

3. torna-se necessário uma avaliação distinta no que diz respeito àquilo que aconteceu no primeiro e o que ocorreu no segundo turno.

Isso tudo tenha provavelmente a ver, em grande parte, com o tamanho do Brasil que, além de possuir uma extensão geográfica imensa, junta também realidades sociológicas bastante diferenciadas. Além do mais precisamos reconhecer que os paradoxos e os contrastes continuam caracterizando e acompanhando a nossa identidade nacional.

Ilustremos agora em seguida essa introdução preliminar com alguns exemplos:
No novo mapa político desenhado pelas eleições realizadas cada um dos três maiores partidos pode comemorar importantes conquistas:

a) O PT por ter conseguido a reeleição do presidente Lula e uma representação estável no Congresso Nacional (83 deputados e 11 senadores), apesar de todas as CPI’s da corrupção e da sofrida perseguição por parte dos mais poderosos meios de comunicação social.

b) O PMDB por alcançar a maior bancada na Câmara Federal (89 deputados) e o maior número de governadores de Estado (7); dentro do nosso sistema presidencialista isso significa que ele está com o poder político mais relevante.

c) o PSDB que, mesmo sendo frustrado na sua expectativa de ganhar novamente a presidência da República, governará 6 Estados, que juntos equivalem a 43% do total de eleitores do Brasil e 51% (!) do total do PIB do país (cerca de R$ 793 bilhões)


- Na Câmara dos Deputados houve uma renovação de 47% para o próximo mandato; o índice é superior ao verificados nas duas eleições anteriores – 1998 e 2002. Dos 236 novos eleitos, 41 já foram deputados em outras legislaturas e 195 o serão pela primeira vez. Esse quadro, no entanto, é de difícil interpretação: de um lado, foram reeleitos 53 deputados que respondem a processos ou estão sendo interrogados por algum crime; do outro, as urnas exprimem o desejo difuso de renovação ética pela reeleição de parlamentares que se empenharam em favor da moralização dos costumes políticos e na rejeição de parlamentares com imagem negativa, como Severino Cavalcanti e Nei Suassuna. Também não podemos perder de vista que o percentual de votos nulos cresceu 66%, e o de brancos, 34%, em relação à eleição passada.


- As surpresas decepcionantes relacionadas aos deputados federais mais votados no nosso Estado de São Paulo, que não é apenas o com o maior eleitorado do país mas também o economicamente mais forte (Maluf, Clodovil, Enéas,...), e à volta no cenário político nacional de gente como Fernando Collor, são altamente compensadas pelo fim do ciclo biológico (termo usado pelo governador em exercício de São Paulo, o Cláudio Lembo) de oligarquias do PFL que representam a mais declarada "direita". Trata-se das derrotas sofridas pelo senador Antonio Carlos Magalhães na Bahia, pelos aliados do senador Marco Maciel em Pernambuco, pelos Bornhausen que desapareceram da política de Santa Catarina e pela Rosana Sarney que caiu no Maranhão.


- Entre o primeiro e o segundo turno houve uma mudança significativa quando analisamos a votação que os dois postulantes principais à eleição presidencial receberam: Lula cresceu mais de 12% e Alckmin perdeu quase 2,5% dos votos válidos. Obviamente isso se deve a um conjunto de fatores. Arrisco-me a mencionar os seguintes: Lula faltou ao debate derradeiro na TV Globo do primeiro turno, mas participou de 4 realizados em vista da disputa no segundo turno, conseguindo convencer melhor; os votos dados ao Cristóvão Buarque e à Helena Heloísa no primeiro pleito não migraram para o Geraldo Alckmin no segundo, apesar das declarações desfavoráveis de ambos à candidatura do Lula; o marketing político de Lula no intervalo entre dia 01/10 e dia 29/10 foi bem superior ao de seu adversário; o segundo turno ajudou o povo a entender e discernir melhor que se tratava de duas candidaturas de orientações diferentes quanto ao papel do Estado, ligados a partidos formados ao final da ditadura militar e com forte marca paulista: de São Paulo ao sul, centro e oeste do país (até o Acre), os eleitores preferiam quem prega menos Estado, menos impostos, maior autonomia dos estados federados, menos empresas estatais, mais capitalismo liberal, ALCA e volta à política externa de FHC / os estados do Norte (com exceção de Roraima) e Nordeste, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo sufragaram o candidato que estancou as privatizações, orientou a política externa para as relações com países emergentes e os vizinhos, cobrou mais impostos e empreendeu política social de transferência direta de renda para os mais pobres.

2. Qual deve ser a maior preocupação do próximo governo na área social?

Convencido de que o Brasil vive um longo período de crise, quero dar voz aos movimentos sociais que, através da sua Assembléia Popular, da coordenação dos mesmos (CMS) e da Semana Social da CNBB, apresentam várias propostas, entre as quais destaco as seguintes:

SISTEMA POLÍTICO
Queremos um país que crie e utilize mecanismos de participação e decisão direta da população nas várias instâncias do poder político e social, construindo uma verdadeira democracia popular participativa. É preciso regulamentar os plebiscitos, referendos e consultas populares, para tomada de decisões de importância para o povo.

DIREITO DE TRABALHO
O Estado deve garantir a todos o direito ao trabalho. Como condição de cidadania plena, como direito fundamental de realização humana. E criar condições para que seja um trabalho produtivo, criativo, não alienado e voltado para as necessidades da maioria. Deve garantir salários dignos para todos os trabalhadores, na ativa e aposentados.
O Estado deve garantir os direitos sociais que constam da Constituição e são amplamente desrespeitados, como o acesso universal à Previdência, a garantia de ampla organização sindical e sem discriminação de qualquer tipo.

REFORMA AGRÁRIA
A nação, por meio do Estado, do governo, das leis e da organização de seu povo, deve zelar permanentemente pela soberania, pelo patrimônio coletivo e pela sanidade ambiental. É preciso realizar uma ampla reforma agrária, popular, para garantir acesso à terra a todos os que nela querem trabalhar. Deve-se garantir a posse e o uso de todas as comunidades originárias, dos povos indígenas e dos quilombolas. E também estabelecer um limite máximo no tamanho da propriedade da terra, como forma de garantir sua utilização social e racional.
É preciso reorganizar a produção agrícola nacional tendo como objetivo principal a produção de alimentos saudáveis, para toda a população e aplicando o princípio da soberania alimentar. A política de exportações de produtos agrícolas deve ser apenas complementar, pois prioridade absoluta deve ser o combate à fome e à miséria existentes dentro do próprio Brasil.

EDUCAÇÃO E CULTURA
A educação e a elevação do nível cultural, do conhecimento, de valorização dos saberes populares, é condição fundamental para a realização dos brasileiros como seres humanos plenos, com dignidade e altivez. Seremos um país desenvolvido e uma sociedade democrática somente se conseguirmos implementar e garantir o direito à Educação pública e gratuita, em todos os níveis, a toda a população. Precisamos de um sistema educacional que priorize a realização humana e não apenas treine para funções técnicas.

SAÚDE PÚBLICA
O Estado deve garantir e defender a saúde de toda a população, implementando políticas públicas visando especialmente medidas preventivas às doenças. O sistema de saúde pública deve ser ampliado e melhorado, combinado com o ‘Programa de Saúde da Família’.
O Estado deve garantir acesso a atendimento médico-odontológico e a medicamentos gratuitos a toda população necessitada. Deve combater todas as práticas que mercantilizam o atendimento de saúde. Deve organizar um processo de formação massiva, ampliando o número de profissionais na área de saúde, de agentes populares de saúde a médicos e especialistas.

Quero acrescentar ainda algumas considerações:


- Por mais louváveis que sejam os programas sociais instalados durante o primeiro governo Lula como, por exemplo, "Bolsa Família" e "ProUni", deve-se agora em diante fazer tudo que for possível para melhorá-los e investir prioritariamente em verdadeira promoção humana.


- Outros programas, como esse do ‘benefício de prestação continuada’ que contempla idosos e deficientes integrando famílias cuja renda não ultrapassa quatro salários mínimos, precisam ser re-avaliados no que diz respeito aos critérios estabelecidos.


- É certo que é sempre melhor ensinar a pescar do que distribuir peixes, mas não é possível se fazer tudo. É necessária uma certa política de assistência caridosa, porque a fome não espera. No Brasil, ainda há milhões de famintos. Mas não se pode conformar a política ao assistencialismo e atender a população num "estilo bombeiro", apagando incêndios imediatos. É preciso uma política social mais estruturada, que parte para as raízes do problema e das raízes para a solução: terra no campo, combate à especulação urbana de terrenos, queda nos juros, frear a cobiça do agronegócio, pensar mais no mercado interno e menos na exportação excessivamente capitalista. E, enquanto isso, continuar ajudando aqueles que possuem uma necessidade urgente.


3. Como você vê o papel do cristão no atual cenário político brasileiro? Como despertar a consciência política em nossas comunidades?

Certamente essas questões são de uma enorme importância para a missão evangelizadora da Igreja. Sobretudo quando nos preocupamos com a vigilância diante do eminente perigo de propostas religiosas alienadoras.
Para iniciar a minha resposta quero citar Frei Betto:
"A política é laica, ou seja, neutra em matéria de religião. Ela visa o conjunto da população, sem levar em conta as convicções religiosas do cidadão e da cidadã. A todos o governo tem a obrigação de servir, assegurando-lhes direitos, proteção e o mínimo de bens para que possam viver em dignidade. Se nenhuma religião tem o direito de tutelar a política, isso não significa que a política deve se confinar no pragmatismo do jogo de poder. A política se apóia em valores éticos. E nós, cristãos, temos como fonte de valores a Palavra de Jesus. É à luz do Evangelho que avaliamos todas as esferas da atividade humana, inclusive a política que é a mais importante delas, pois influi em todas as outras. Para Jesus, o dom maior de Deus é a vida. Está mais próxima do Evangelho a política que favorece condições dignas de vida à população toda" (Frei Betto, ‘Carta aberta aos Eleitores Cristãos’ – outubro 2006).
Lembro-me, nesse sentido que em 1992 o Movimento pela Ética na Política considerou a concentração da renda e o alimento transformado em moeda como as mais graves expressões de corrupção no país. O pecado persiste até hoje, sem notável indicação de mudança! Ao lado das grandes riquezas que estão sendo produzidas (aliás, na maioria das vezes na base do capital especulativo – vejamos os lucros astronômicos dos bancos!), agrave-se a degradação ambiental e cresce a exclusão social gerando fome e marginalização. Vivemos numa sociedade abortiva e cada vez mais violenta e cínica. Por isso acredito que o maior desafio para nós, cristãos, é exigir que a política tome a frente na construção de uma sociedade mais solidária através da justiça social, da criação de oportunidades mais igualitárias no sistema educacional e de promoção da cidadania no sentido mais amplo possível deste termo. Sem erradicar o analfabetismo e melhorar a qualidade do ensino público o Brasil não sairá do atoleiro da corrupção e da miséria. O Papa João Paulo II já nos advertia que o analfabetismo quase sempre é explorado econômica e politicamente!
Temos que acolher na vida de nossas comunidades cristãs, de maneira cada vez mais efetiva, os apelos lançados pelos próprios bispos. Nós os encontramos presentes, por exemplo, nas ‘orientações para ações concretas’ conforme apresentadas no Documento 82 da CNBB sobre "Eleições 2006" – confere-se as páginas de 43 a 48.


4. A Igreja tem contribuído para a reflexão e a formação de cristãos para atuar na política?

De acordo com a sensibilidade de Javé expressa na Bíblia: "Eu vi muito bem a miséria do meu povo... ouvi o seu clamor contra os seus opressores e conheço os seus sofrimentos" (Ex 3,7), a CNBB tem se pronunciado, ao longo das últimas décadas, sobre momentos eleitorais. Como pastores, movidos por compaixão e desejo de servir, dirigindo-se aos eleitores, incentivando a sua efetiva participação na escolha de seus participantes, e apresentando aos candidatos propostas para a construção de políticas estruturantes, que assegurem o desenvolvimento da nação com inclusão e justiça social, os nossos bispos certamente deram uma contribuição bastante valiosa. Além do mais, com seus documentos do tipo "Exigências cristãs de uma ordem política" e uma Campanha da Fraternidade inteiramente dedicada ao tema da política, eles ofereceram subsídios magníficos para uma formação contínua em relação à nossa responsabilidade política enquanto cristãos e enquanto comunidades cristãs. Assim ajudaram repetidas vezes a nos despertar para uma grande verdade que consiste na afirmação de que o processo democrático é muito maior que apenas o ato isolado de votar!
Parece-me, no entanto, impossível avaliar em que medida tudo isso recebeu acolhimento na base e até que ponto as paróquias, os movimentos e as diversas pastorais se esforçaram para colocá-lo na prática.
A impressão que a gente leva é que existe muita omissão! Também sentimos a cada dia que passa que a conjuntura eclesial não é muito favorável às pastorais sociais. Temos hoje uma Igreja onde majoritariamente os movimentos trabalham a subjetividade do indivíduo e o lado sentimental da fé. Assistimos a muitas expressões de culto festivo, superficial e impacto momentâneo, chegando até a extremos quando o clima situa-se na linha de "discoteca religiosa"! Sentimos falta de uma espiritualidade mais profunda e de uma teologia "pé no chão" que incentiva para um engajamento cristão mais encarnado na realidade.
Essa situação toda talvez represente uma oportunidade para a Pastoral da Comunicação tentar a realização de um sério levantamento aqui na própria Arquidiocese no intuito de descobrir as causas. Poderia, por exemplo, ser através da elaboração de um questionário, onde aparecem perguntas do seguinte tipo:
- quantos encontros, reuniões ou debates foram realizados na comunidade a respeito da relação entre fé e política e das eleições passadas?
- qual trabalho de pastoral social existe na paróquia e como esse pode ser avaliado diante da comparação entre ‘assistencialismo’ e ‘promoção humana’?
- como os movimentos se situam diante dos desafios enfrentados pelas pastorais sociais da nossa Igreja?
- qual foi a participação efetiva de comunidades / movimentos / serviços pastorais nesses últimos anos à Campanha da Fraternidade?
- o que foi feito para incentivar a participação à palestra do Dr. Plínio de Arrudo Sampaio, organizada pelo CEARP e os seminários?
- quais os últimos três livros que o padre / diácono responsável pela comunidade leu? o que ele faz para cuidar de sua reciclagem filosófica e teológica?
- o que a Arquidiocese e as Foranias têm investido no campo da formação de lideranças leigas em vista dos compromissos sociais e políticos?


5. No contato com as pessoas nota-se uma desconfiança muito grande diante dos políticos. O que precisamos fazer para romper esta desconfiança por parte do eleitor? É possível acreditar nos políticos?

Estava evidente a falta de entusiasmo do povo brasileiro com as eleições do mês passado. Nem mesmo a programação na TV despertou o interesse das pessoas. O que ocorreu? Creio que tivemos uma verdadeira aula de realismo nos últimos tempos. O Legislativo não mostrou competência no trato dos desvios cometidos por políticos no exercício de seus mandatos concedidos pelo povo; o Judiciário não mostrou agilidade na implementação de decisões; o Executivo corrompeu nossas utopias, se mantendo marginal, desplumado de sua função primordial. E o que é pior, não se trata de um fenômeno recente, pois o povo vem sendo ludibriado há anos!
Todavia, não adianta ficar perplexo e imóvel! É preciso aprender a lição. Nunca houve uma tomada de consciência tão clara de que a construção da democracia não é feita de sonho, mas de luta perseverante. O principal ingrediente para a conquista da cidadania plena é a participação da sociedade civil organizada. Só assim será possível dar suporte aos bons projetos políticos e evitar que recursos públicos sejam sujeitos a um malabarismo na procura de indevido interesse próprio. Na verdade, tempo de eleição no Brasil sempre foi tempo de muito gasto (nas penúltimas eleições uma imensidão de ‘outdoors’ caríssimos), barulho excessivo e festa com distribuição gratuita de churrasco e cerveja abundantes para comprar votos. No entanto, a festa só deve acontecer se, de fato, o povo se fizer representar nos cargos de responsabilidade maior, de tal modo que as verdadeiras necessidades da maioria sejam atendidas. Por isso, a alegria maior deve aparecer depois e não antes das eleições e conseqüentemente o voto deve ser consciente. Dia de eleição é dia de atividade cívica, é dia de decisão como fruto de reflexão e de discussão, é dia de compromisso! Ao eleger um representante, repartimos com ele a cumplicidade para defender a democracia, a seriedade na política e, sobretudo, o bem comum.
Vivemos atualmente no Brasil um momento singular. A crise nos arremessou a um novo patamar na vida política. Se, de um lado, ficamos desolados ao perceber tantos erros e atitudes irresponsáveis, por outro lado, nossas instituições foram preservadas, e a democracia ainda nos garante a oportunidade do exercício livre do voto. Precisamos, portanto, sempre procurar fazer da urna o lugar da nossa demonstração de fé no futuro da nação.
Acompanhando de mais perto a conduta e a prática de nossos políticos nos três níveis – municipal, estadual e federal – não resta dúvida que vamos descobrir quem é quem, quem defende o que, quem merece e quem não merece a nossa confiança. Vamos reconhecer também os homens e as mulheres que em sintonia com a famosa afirmação do Papa Paulo VI de grata memória: "A política é uma das mais altas expressões da caridade cristã", contribuem como políticos profissionais para uma ordem justa, segura e duradoura.


6. Qual é a mensagem que você gostaria de deixar para os internautas?


Na verdade, são três e quero emprestá-las de pessoas que levam a minha profunda admiração:
- "Não devemos computar realizações para escolher em quem votar. Não acredito nessa contabilidade. Houve mesmo um tempo no Brasil em que se dizia a favor de um candidato: "Ele rouba mas faz". A realização justificava a trapaça. O que devemos querer são candidatos que sejam capazes de fazer as pessoas sonhar, candidatos cujo rosto irradie a pureza dos que vão morrer. Para que o povo ressuscite dos mortos. Vi um pouco disso no rosto do Cristovam Buarque. Sua campanha, de início, estava tocada pela morte. A despeito disso continuou, movido pelo sonho. O rosto tranqüilo, as palavras mansas, ele me sugeria pureza de coração. E pureza de coração, como disse o filósofo Kierkegaard, "é desejar uma só coisa". Ele desejava uma só coisa: educar o povo para que ele seja feliz e se torne senhor do seu próprio destino" (Rubem Alves, psicanalista, escritor e educador: "Pureza dos que vão morrer..." – ‘Folha de São Paulo’, 18/10/2006).
- "Papai tem atuado de forma serena e transparente, sem juízos sumários e parciais, reconhecendo que os erros nunca estão de uma parte só – embora contra ele não pesa uma única denúncia, um único fio de suspeita. Defende o patrimônio nacional, os direitos da juventude e dos trabalhadores com as virtudes da tolerância, da compreensão e do respeito. Médico formado pela faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, tanto no seu coração profissional e humano como nas preocupações que dirigem sua atuação política ecoam os sofrimentos do mundo. Procura sempre abrir caminhos de esperança através de trabalhos e projetos em favor das populações sofridas dos países árabes agredidos pelo imperialismo norte-americano, da insistência humanitária pela suspensão do embargo econômico contra Cuba e pelo fim da invasão cruel de terras palestinas". (Juliana, psicóloga e filha do deputado federal Jamil Murad em carta aos amigos – 13/09/2006).
- "Espero que a política agrária e a política agrícola, tendo a segurança alimentar e nutricional como objetivo, sejam definidas a partir das respostas a estas perguntas: O que plantar? Por que plantar? Como plantar? Para quem plantar? Em geral são os pequenos e médios produtores que abastecem a mesa do povo em qualquer recanto da Terra. Aliás, o Brasil não é problema, mas solução para o problema da fome no mundo. Espero que o Presidente Lula, no seu segundo mandato, possa superar as contradições que caracterizam o Estado Brasileiro e afetaram bastante seu primeiro governo. Não se trata apenas de combater a corrupção, mas cultivar uma proposta ética de desenvolvimento. Impossível servir a dois senhores, o Mercado e o Povo. Voto por uma economia com mercado, justa e solidária. Reine a Ética, governe a Política e submeta-se o Mercado. Cultivando a sabedoria, a coragem, a ousadia e a humildade, com a graça de Deus e a participação do povo, o nosso inteligentíssimo irmão metalúrgico poderá realizar uma grande gestão. Quando o pão é partilhado com o faminto e o injustiçado, brilhe a Luz! (Isaías 58,6-8). Não tenhamos medo de sermos felizes!" (Dom Mauro Morelli, Bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias: "Declaração de Voto" – ‘Boletim de Notícias da Adital’, Dia da Criança-12/10/2006).

Padre Francisco Vannerom, assessor da pastoral "Fé e Política", uma semana depois das eleições e após avaliação compartilhada na última reunião da equipe arquidiocesana na terça-feira passada (7/11).


Ribeirão Preto, novembro/2006.

COISA DE ARTISTA


"Outro dia desses me disseram que eu tinha cara de artista. Eu não estava nos meus melhores dias, e resolvi perguntar como é que era a cara de um artista.

- Bem, artista é tudo assim, ué.

- Assim como?

- Cabeludinho, barba mal feita, sabe como é?

- Não, não sei como é. Como é?

- Bem, todo artista tem esse jeito aí, que você tem, uns negócios diferentes.

- E que negócio você acha diferente em mim?

- Você... hã... usa umas pulseiras, por exemplo.

- Ah, pulseira é um negócio esquisito?

- Bem, é e não é.

- Mas é ou não é?

- Tudo bem, é. Usar pulseira é um negócio esquisito.

- Quer dizer que a senhora sua mãe é esquisita? Porque ela usa pulseira, não usa?

- Olha, eu estava aqui, na maior das boas intenções, e você vem aí, botar a mãe no meio...

- Eu não estou botando mãe no meio. Só queria saber como é a cara de um artista.

- Artista é assim, gosta de confusão, que nem essa que você tá fazendo agora.

- Ah, artista gosta de confusão?

- Você sabe muito bem do que eu tô falando.

- Não, não sei, do que é que você está falando?

- Eu tô falando que a gente olha para o cara e vê logo que ele é artista. Por causa do cabelo. Das roupas estranhas. Da barba. Artista é assim, sempre meio cabeludo, meio barbudo, com umas roupas estranhas. E gosta de fazer confusão...

- Quer dizer que o Bin Laden é um artista?

- O Bin Laden?

- É, o Bin Laden. Ele tem um cabelo esquisito, é barbudo, está sempre com aquelas roupas estranhas. E se tem um cara que adora uma confusão, é o Bin Laden. Então ele é um artista?

- Mas que coisa, é claro que o Bin Laden não é um artista. Também não é todo mundo que é artista.

- Ah, que nem o Drummond, né? O Carlos Drummond de Andrade também não era um artista. Por que o Drummond sempre usava terno. O cabelo curtinho. Parece que sempre tinha acabado de fazer barba. Um homem assim não podia nunca ser um artista, não é mesmo? Talvez ele fosse um... engenheiro? Ou um advogado. É, o Drummond tem cara de advogado. E o Lula? Ele tem cara de quê?

- O Lula?

- É, o Lula, o nosso presidente. Ele tem cara de quê?

- Olha, você não me venha com esse papo de artista...

- Papo de artista? Quer dizer que artista tem papo? E me diz aí, como é papo de artista?

- Ah, vai te catar!

- Catar? Artista também cata, é?"

Artur de Carvalho
(Extraído do site da Agência Carta Maior)

Ilustração do autor

13.11.06

OSPRA!!!


O MUNDO SUBMERSO

Certa feita eu tomava um chopp, sentado a uma mesa, no Templo da Cidadania, em Ribeirão Preto e um senhor sentou-se junto a mim para uma prosa. Conversa vai conversa vem eu acabei abordando uma fala que dizia sobre a Ponte do Funil.
Para quem não sabe, essa ponte era apoiada em rochas e unia o município de Lavras ao de Perdões, no Sul de Minas, na região do Alto Rio Grande, onde o rio afunilava e descia barulhento no meio das pedras.
Era ali para onde a piracema levava todos os peixes.
Quando esse senhor soube da minha história com aquele lugar, seus olhos encheram-se de luz e com muita alegria falou-me do quanto era feliz nos seus passeios domingueiros na Ponte do Funil.
Mas depois ele ficou muito triste quando minha prosa foi contando o que aconteceu alí e que colocou tudo embaixo d’água, até a rocinha que meu irmão, Paulinho Martins, cuidou e deu trato por quase duas décadas. Mesmo morando em Campinas, pertinho de São Paulo, Paulinho dava um jeitinho de estar ali de costumeiro cumprindo esse seu ofício.
Plantou muita árvore, madeira de lei. fez bem-feitorias, inclusive na casa, fez paiol, plantava um feijãozinho, um milho verde, criava umas galinhas, sem falar numa hortinha, bem surtida que cultivava no fundo do quintal.
Paulinho é muito caprichoso e o sítio era muito bem cuidado, inda mais com a colaboração e o toque de Ana Rosa.
Lá, quando o sol se recolhia, a noite chegava, trazendo a cantoria dos bichos no mato em volta. E a gente, embaixo da luz do lampião, em companhia do velho fogão de lenha e de uma cachacinha misturávamos a cantoria dos bichos à música de Zé Coco do Riachão, Pena Branca e Xavantinho, Wilson Aragão, Elomar, Paulinho Pedra Azul, Vital Farias..., construindo assim aquela cantoria que era de todo o universo. A roça ficava no município de Perdões-MG, na margem direita do Rio Grande. E o nome do lugar, Sítio do Bié.
Hoje não existe mais. Que tristeza! A companhia de eletricidade construiu uma usina e a represa cobriu tudo. Afogou nossa alegria. Mudou a feição do lugar. Quantas criaturinhas de Deus não pereceram afogadas quando a barragem se fechou e o rio foi impedido de fazer seu curso e começou a inchar...?
Muitas pessoas presenciaram tudo e perceberam o silêncio que reinou quando a inundação cobriu as pedras do rio e revelou a agonia do lugar perante a fatalidade das águas que subiam engolindo estradas, casas, ranchos e sítios, separando o que a ponte unira por quase um século.
Nunca mais cruzaríamos a Ponte do Funil; nunca mais aquele peixinho frito e aquela prosa gostosa no bar de seo Vicente, com Célia e com Dute, e com Camilo no rancho “Nenhum de Nós”.
Há dois quilômetros dali, descendo o rio pela estradinha de chão batido que há muito tempo atrás suportava a linha do trem, ficava a “rocinha”.
Na metade do caminho o bar de Carlinhos Timburé, perto da roça o bar do Nelson, na porteira, o pé de aroeira e chegando na casa o pé de cidra que deu tantos frutos para dona Lilia fazer tantos doces deliciosos.
Há meio século que falavam da barragem que haveria de vir. Alguns achavam que não viria. Outros que era questão de tempo. Esse passou. E enquanto o tempo passava a gente dali passava o tempo na pesca. Subsistência.
O rio dá. O rio tira. O rio é tudo. O rio é o mundo.
O rio é a alegria de quem chega e a tristeza de quem não volta. Rio de lágrimas! Rio das mortes! Rio da vida!!!
Rio Grande, eternamente, represado dentro de nós. Rio generoso. Até jaú, um despotismo de peixe de couro, seo Domingos Pescador, um nativo, já havia pescado ali. Setenta e cinco quilos!
Seo Nelson Veloso também pegou um e levou o jaú de bicicleta para todo mundo ver e não dizer depois que era estória de pescador. E aliás, deve ser isso que vocês estão pensando, né? Mas não é não! Jaú é isso mesmo. Eu até pensei que fosse filhote...!
A flora e a fauna preservadas exuberavam-se mostrando uma infinidade de espécies: tiziu, tucano, tico-tico, sabiá, gavião, tatu, jaú, jacarandá. vovô-do-brejo, garça, dourado, piau, mogno, pau-brasil...
No quintal da roça, manga ubá, tão doce que eu bebia água depois de chupá-la. Banana era a “São Tomé”, só vendo para crer.
Foi nessa roça que Izabel conquistou distâncias dando seus primeiros passos.
Não tinha luz elétrica, se quisesse ouvir rádio tinha que ser rádio de pilha. Luz era só a do lampião. A gente se gabava muito de não ter luz alí. Alguns moradores ribeirinhos já haviam estendido a rede elétrica para o uso lá seus. Só a gente relutava. Éramos contra essa tal de rede elétrica, parecendo até que a gente estava adivinhando que mais tarde, por causa dessa tal eletricidade perderíamos o nosso cantinho bom do mundo.
Que progresso é esse que cobra tão alto a sua realização...!?!
A gente acordava com a passarinhada e dormia com o barulho do rio ao longe, lá embaixo, batendo nas pedras do caminho de suas águas.
O rio levou alguns de nós e a represa afogou um pedaço de quem ficou.
E naquela mesa de bar, esse senhor que não me disse o seu nome, não pode conter suas lágrimas. Chorou tanto que parecia o Rio Grande escorrendo dos olhos dele e falou, já saudoso, que “aquele lugar só irá existir agora na memória de nossas retinas”.
Enxugou suas lágrimas e foi-se embora, em silêncio, olhando o chão.
Somos o que restou daquele mundo submerso.
- Ospra!!!

Extraído do livro (a ser publicado) "Dedinho de Prosa" de Jeziel Pousa Corrêa de Paiva

10.11.06

CONTA UM CAUSO, CUMPADI.

Meus cumpadres e minhas comadres.

Dentro de pouco tempo, espero, vou estar fazendo o lançamento de meu primeiro livro. Estou atrás de uma maneira viável para quem dispõe de parcos recursos como eu, fazê-lo.
Eu fiquei sabendo que pela internet também publica-se livros mas eu nunca vou dar conta de ler um livro inteiro com os "ói" grudados dessa telinha aqui. E tenho certeza que muitos de vocês também não. Mas, um causo ou outro não tem problema, né. A gente lê. E pensando assim vou transcrever aqui no blog um causo que conto no livro que espero lançar brevemente.
É um causo que meu irmão Ismael gosta muito e pediu-me que o incluisse no livro. Então lá vai.

JOÃOZIM MILAGRÊRO
Um certo fazendeiro de nome Aristides, dono de um rebanho de umas cem cabeças, lutava com dificuldades contra uma estiagem que naquele ano judiara de todo mundo. Aquela seca prolongada deixou o gado desse nosso fazendeiro com pouco peso e fez cair sua produção leiteira. Para aumentar ainda mais os problemas de seo Aristides, seu sofrido rebanho adquire uma doença estranha que atacava as pernas dianteiras dos animais e estes, não se sustentando em pé, arriavam no chão.
O quadro foi ficando ainda mais sinistro quando a urubuzada começou a sobrevoar o pasto esperando a hora daquele banquete farto que se aproximava.
Seo Aristides já havia tentado de tudo, coitado. Gastou todo seu dinheiro com veterinários e remédios e não havia como controlar aquela doença maldita. Até que um vaqueiro, conhecido por Romão, resolve sugerir a seo Aristides que lançasse mão do último recurso que havia.
- Patrão. Mode que o sinhô mandô que vinhesse aqui tudo quanto é dotôr e ninhum deu jeito, se for do consentimento de vosmicê, eu cunheço seo Joãozim Milagrêro: um homim franzino, magricelo, um caquim de home. A gente assuntano, anssim, num dá nada por ele, mas o home é rezador e benze que é uma beleza.
- Mas cê acha que essas coisa de reza arresorve, Rumão?
- Oia patrão. Meu caçulo tava esmegraceno mais dipressa que seu gado, ficano seco, num comia, sem sustança prá quarqué coisa. Levei lá no homim e ele curou. Me falou que era um tár de macimioto. Arribou o minino!
- Então busca o home, Rumão! Quanto tempo cê acha qui tá aqui de vorta q’esse tár Joãozim Milagrêro?
- Eu saino ind’agurinha, patrão, que o sór tá se pondo, carculo que aminhã, na barra do dia, eu mais ele tamo aqui pisando em suas terra.
Entonce vá, Rumão. Traga cá o tár.
Com permissão do patrão, Romão selou o melhor cavalo de seo Aristides e rumou em disparada à procura do benzedor. Era o último recurso.
Naquela noite seo Aristides nem dormiu. Dona Madalena, sua esposa, fez a janta, depois lavou os trem e foi dormir. Seo Aristides ficou na varanda da casa com o olhar perdido no pasto lá adiante vendo os vultos caídos de suas rezes iluminadas pela lua cheia.
Romão e o benzedor chegam junto com o sol. Dona Madalena já tinha passado o café que foi servido junto com um delicioso bolo de fubá. Feito o desjejum foram os três ao pasto observar de perto o que estava acontecendo com aquele gado.
Depois de muito assuntar, seo Joãozim Milagrêro, rompe o silêncio e diz na maior rapidez:
- Nome do pá, du fi, spritu sant’amém! Creim Deus pá tô poderôs criadô du cé e da tér e na virge Maria nossa mãe prá todo o sempr’amém, ôch!
E fez o sinal da cruz três vezes. Uma na testa, outra na altura da boca e outra começando na testa indo para o peito e nos ombros. Depois se arrepiou todo e deu um sacolejo de corpo inteiro parecendo cachorro quando acorda, e falou à seo Aristides.
- Eu curo, mas perciso d’ua fêma sadia pro mode fazê a benzeção nas perna dela.
Procuraram uma vaca ou uma novilha pelos pastos e não acharam uma sequer que estivesse sadia. Todas haviam pegado a tal doença.
- A cachorra serve – disse o curandeiro.
- Aqui num tem cachorra não, só tem esse perdiguêro aí – disse seo Aristides, apontando para o cachorro da fazenda.
- Tô falando disso não. Tõ falando da sua muié – disse Joãozim Milagrêro.
- Oia o respeito! Falou seo Aristides.
- Né farta dele não, siô! É somente anssim que se cura dessa praga de doença má que suas rês pegô. Se tá achano farta de respeito eu vou-me embora.
- Carece não – disse seo Aristides. – Sendo com respeito não vejo mal.
Então voltaram para a casa da fazenda e seo Joãozim Milagrêro se trancou no quarto com dona Madalena enquanto seo Aristides ficara do lado de fora com o ouvido colado na porta e os olhos lá no pasto. De repente ele ouviu a vozinha do benzedor:
- Pego nas canela prá alevantar as vaca amarela.
Nessa hora as vacas amarelas que estavam arriadas no chão começaram a se levantar e seo Aristides ficou maravilhado com o que vira.
- Uai, né qui o trem funciona...!
Dalí a pouco, novamente, a vozinha do seo Joãozim quebra o silêncio de dentro do quarto:
- Pego nos juêi prá alevantar os boi vermêi.
Não é que os bois vermelhos começaram a se levantar...? Seo Aristides abre então aquele sorriso e lança um olhar de agradecimento ao vaqueiro Romão.
De novo a vozinha do seo Joãozim:
- Pego nas côxa prá alevantar as vaca mocha.
E as vacas mochas todas se levantaram. Só que seo Aristides começou a se preocupar com dona Madalena dentro do quarto. Também pudera, as mãos do curandeiro estavam aos poucos chegando perto duma região que somente à seo Aristides era permitido acesso. Sua preocupação aumentou quando ele ouviu de novo a voz do Milagrêro lá de dentro do quarto:
- Pego na virilha prá alevantar as novilha.
Nesta hora seo Aristides, por precaução, irrompe subitamente para dentro do quarto e fala determinado para seo Joãozim Milegrêro:
- As vaca preta e os boi zebu cê pode dêxá morrer!

9.11.06

ANTROPOFAGIA EM DEMASIA ACABA COM TRADIÇÕES POPULARES

Poucos compositores brasileiros atingem o equilíbrio estético entre as tradições das culturas populares e o extenso universo eletrônico pop. Alceu Valença conseguiu. Em entrevista exclusiva a Agência Carta Maior, Alceu fala do espetáculo da próxima semana e de projetos futuros, da responsabilidade do poder público em definir políticas culturais para as tradições regionais e do vício antropofágico brasileiro.

Carlos Gustavo Yoda – Carta Maior

SÃO PAULO - Poucos compositores brasileiros conseguem atingir o equilíbrio estético entre as tradições das culturas populares e o extenso universo eletrônico pop. Alceu de Paiva Valença, de São Bento do Uma (PE), conseguiu. E hoje, depois de 36 anos de carreira, pode falar como poucos sobre o universo da indústria cultural e das manifestações populares pernambucanas.
Alceu estará no Rio de Janeiro, dia 11, e em São Paulo, dia 15, juntamente com dezenas de artistas pernambucanos para o espetáculo de lançamento do Carnaval de Recife, em uma iniciativa da prefeitura do capital pernambucana. Muitos ritmos serão lembrados e revisitados no repertório que traz do frevo ao maracatu. Além dele, o evento terá intérpretes como Lirinha, Lenine, Silvério Pessoa. Alceu acabou de gravar também um DVD de um show só de frevos realizado na praça do Marco Zero, em Recife, com 140 mil pessoas fantasiadas, que será lançado em dezembro.
O pré-carnaval e o lançamento do DVD reafirmam em uma só voz a necessidade da preservação das culturas populares brasileiras. “A cultura popular aqui ainda resiste dentro das pessoas, na alma, no coração. O verdadeiro que pulsa dentro de cada um. Agora, as coisas estão aparecendo depois da internet. É muito pouco o apoio para a cultura popular. Então o processo é natural, é do ser humano. As novas tecnologias apenas ajudaram a libertar isso”, afirmou esse “ateu comovido à procura de fé”.
Em entrevista exclusiva à Carta Maior, Alceu Valença falou do espetáculo da próxima semana e de projetos futuros, da responsabilidade do poder público em definir políticas culturais para as tradições regionais e do vício antropofágico brasileiro.

Carta Maior – Parece que as culturas populares estão em ebulição nos últimos tempos. É alguma tendência?

Alceu Valença – Não é tendência. Um país como o Brasil, com toda essa diversidade, tem tradições muito fortes. Um país que perde sua cultura popular se acaba. Existe em quase todos os lugares a desconstrução de suas raízes. E isso é claro resultado da hegemonia da indústria cultural norte-americana. Ligamos a televisão e só tem coisas de fora. A cultura popular aqui ainda resiste dentro das pessoas, na alma, no coração. O verdadeiro que pulsa dentro de cada um. Agora, as coisas estão aparecendo depois da internet. É muito pouco o apoio para a cultura popular. Então o processo é natural, é do ser humano. As novas tecnologias apenas ajudaram a libertar isso. Mas eu procuro um equilíbrio nisso. Eu não digo que precisamos nos fechar para o que vem de fora. Só que não podemos perder nossas referências. Cadê os seguidores do Cartola e do Nelson Cavaquinho? Eles estão se perdendo. Precisamos regar as fontes dos mestres populares.

CM – Mas de quem seria a responsabilidade, então, de fazer esse resgate de referências?

AV – Dentro de um mundo globalizado, cabe ao poder público mostrar as referências de tradição e identidade para seu povo. Atrás da culinária francesa, existe uma tradição. Assim como no tango argentino, o fado português, o rock norte-americano. E parece que o Brasil nega sua tradição como se fosse um pecado.

CM – Em uma entrevista, certa vez, o sr. afirmou que “de tanta antropofagia, o brasileiro acaba perdendo as referências”. Há um exagero antropofágico no Brasil?

AV – Perfeitamente. Colocam isso como uma pedra filosofal. Antropofagia sempre existiu. Isso não é uma tradição brasileira. Agora, a partir do momento que você começa a perder toda a sua referência, não existe identidade. O mundo não tem mais barreiras. Se a cultura regional e popular desaparecer, não há mais sentido em existir essas divisões entre países. Todos serão iguais. É sobre identidade que estamos falando. Não estou macaqueando os norte-americanos. Tenho um respeito profundo pelo rock, pelo blues e pelo jazz. Mas eu vejo que eles têm respeito por isso. Aqui as pessoas se justificam: eu faço uma mistura disso com aquilo. Que coisa babaca. Isso é uma bobagem. Não que as tradições não devam ser trabalhadas, mexidas e evoluídas. Mas com a velocidade que a indústria cultural massacra as coisas, não chegaremos muito longe. Você liga a TV a cabo e só vê coisas norte-americanas. E quando não é, não passa de uma imitação barata daquilo.

CM – E de que forma o poder público poderia interferir nisso?

AV – Sobre tudo precisa rever o que é paradigma cultural. Eu não falo essas coisas em meu nome. Eu já estou consagrado, todos os meus shows estão lotados. Mas é responsabilidade minha, também, pensar a cultura brasileira. Está faltando aparecer o artista brasileiro. Eu nunca tive tanto público quanto agora. Isso é sinal de que está faltando.

CM – Mas novas expressões boas existem, só que não aparecem...AV – É claro. Isso é o resultado de uma indústria cultural falida. Tem uma porção de gente fazendo música contemporânea brasileira, fundada no samba, no maracatu, no forró. Mas não é de bom grado de quem detém a indústria, de quem detém os meios de comunicação. Agora, quando o governo tenta intervir para melhorar as coisas, chegam esses colunistas dizendo que é stalinismo. Não passam de um bando de babacas (risos).

CM – E qual avaliação o sr. faz do Gilberto Gil no Ministério da Cultura?

AV – Os Pontos de Cultura são projetos excelentes, que valorizam as tradições populares e regionais. Agora todo mundo sabe que a verba do Ministério é pífia, e o Gil pouco pode fazer com isso. Mas ao menos fez. Agora, cabe que todo mundo coloque em discussão a comunicação. Tem que ter responsabilidade, tem que divulgar a cultura nacional. É difícil. Mas tem algumas coisas que podem ser feitas. Há de haver algum acordo com os meios para divulgar a cultura brasileira. A proposta de cotas em rádios e na televisão seria um grande avanço. Hoje em dia, as gravadoras não têm nem mais dinheiro para fazer clipes. A indústria cultural está à beira da falência. Há um buraco na programação, que está sendo explorado pelo que vem de fora. O jabaculê sempre existiu, e não se faz nada. E a pirataria corre solta e ninguém faz nada.

CM – No dia 11, no Rio de Janeiro, e dia 15, em São Paulo, o sr. vai participar de um espetáculo de lançamento do Carnaval de Recife. Como será a composição do espetáculo?

AV – O Carnaval de Pernambuco é sem dúvida uma coisa maravilhosa, com toda a diversidade de tradições e culturas. E a prefeitura do Recife está fazendo esse projeto de divulgação do carnaval. Vão participar eu, Silvério Pessoa, Lenine, Lirinha, Elba Ramalho, Orquestra do Maestro Spok, Maracatu Nação Estrela Brilhante, Lula Queiroga, entre outros tantos. Será um show dividido pelos intérpretes e em alguns momentos estaremos todos reunidos no palco. No Rio, vai ser no Circo Voador e, em São Paulo, no Citibank Hall. Ainda não sabemos se iremos levar isso para mais lugares.

CM – O que o sr. está desenvolvendo trabalho novo?

AV – O DVD é a grande novidade: Alceu Valença Marco Zero. Foi o show de maior público até hoje no Recife. 140 mil pessoas fantasiadas. E o show foi lindo, com participação do Silvério Pessoa, Daúde e Paula Lima, além da banda Spok. Tudo isso vai ser lançado em dezembro nas lojas.

CM – E o filme “Cordel Virtual”, em que pé que está?

AV – Está na agenda do dia. Hoje mesmo estava cuidando do roteiro. Já conseguimos captar uma parte dos recursos. Mas ainda estamos meio sem perspectivas de quando conseguiremos toda a verba para começar a gravar.