15.11.06

O BELGA QUE ADOTOU RIBEIRÃO


Ele vai fazer trinta anos de Ribeirão Preto. Já tem mais tempo de Brasil do que em sua terra natal, a distante e gelada Bélgica. Padre Francisco Vannerom, ou simplesmente padre Chicão, adotou Ribeirão Preto no coração e na alma. Rejeita, terminantemente, a idéia de partir. Diz, com convicção, que veio para ficar.
Para viver ao lado dos pobres, lutando suas lutas, festejando suas alegrias, chorando suas dores.
Franciscus Hendrikus Dora Rita Vannerom nasceu em Bruxelas, a 16 de agosto de 1948, filho do belga Josephus e da holandesa Elisabeth Maria. O pai foi artesão na juventude, depois atuou no serviço de alfândega e por fim fez carreira militar. Prisioneiro dos alemães, passou parte da 2ª Guerra confinado em uma fazenda, sendo alimentado com a mesma comida dos porcos – lavagem.
Com o fim da guerra, os aliados ganham o direito de estacionar tropas na Alemanha, e lá se vai a família com os filhos Francisco e Ria. Dos três aos dez anos, Francisco vive em Siegen, perto de Colônia – lá perde a mãe, vítima de câncer, quando tinha nove anos.
Um ano depois, o pai volta a se casar, com a viúva de um primo. Padre Chico não gosta da palavra madrasta, prefere segunda mãe – Georgette tem hoje 86 anos e mora perto de Bruxelas.
O pai, às voltas com problemas pulmonares, decorrentes do confinamento na guerra, consegue transferência para Bruxelas. Lá Francisco estuda até concluir o ensino médio.

PROFISSÃO
Entre os 16, 17 anos, o sonho pessoal era ser jornalista. Já o pai tentava convencê-lo a cursar engenharia. A segunda mãe, uma católica devota, gostaria de oferecer o filho à Igreja.
No movimento de escoteiros, Francisco conhece um seminarista que estava prestes a iniciar uma missão – trabalhar com os pigmeus, povo do Congo, ex-colônia belga na África. Desperta, então, para uma questão: “por que não eu?”
O primeiro seminário que conhece, onde o sistema de formação se baseava no isolamento do mundo externo, não o atrai. Mas trava então contato com outros seminaristas, de um instituto que formava padres seculares europeus para a América Latina, continente que sofria com o reduzido número de sacerdotes. São padres seculares missionários – no latim, fidei donum (doados pela fé).
Vai então para a cidade universitária de Louvaine, onde estuda oito anos (teologia, filosofia e história).
A 5 de maio de 1973 é ordenado padre, na Igreja de Meise, cidadezinha de 8.500 habitantes a 11 km de Bruxelas – onde ainda hoje mora sua mãe. O primeiro posto é na Paróquia de Strombeek-Bever, cidade de 14.000 moradores a seis quilômetros da capital da Bélgica. Após dois anos, toma uma decisão sem volta – quer ser um missionário na América Latina. Recebe todo o apoio da mãe Georgette. “A alegria foi maior que a dor da separação”, recorda.

ESCOLHAS
- Quis ser um missionário, acho que um pouco foi pelo espírito aventureiro natural da juventude. A escolha da América Latina também tem explicação – o continente passava por um momento de transformação social, havia tido a revolução cubana, o idealismo de Che Guevara, clérigos mártires como o colombiano Camilo Torres. Na América Latina, quis o Brasil, já conhecia padres que estavam aqui e passavam férias de 3 em 3 anos na Europa e sabia da fama dos brasileiros, de festivos, alegres, comunicativos. E Ribeirão Preto porque aqui já estavam três padres belgas – Carlos, Paulo e Estevão, conta.

O CHOQUE
Foram 21 dias num navio cargueiro. Em 1° de abril de 1977 aportou no Rio de Janeiro, desembarcou dois dias depois em Santos e em 4 de abril chegou a Ribeirão Preto, vindo de São Paulo em uma perua Kombi.
- A primeira coisa que pensei ao chegar aqui foi – que calor! A segunda – será que vou ter de enfrentar feijão duas vezes por dia? (Na Bélgica, comia sopa de feijão de vez em quando, e só no inverno). Terceira coisa que eu pensei – que povo barulhento! O povo ficava nas ruas até à noite, eu nunca tinha visto um boteco aberto para a rua, lá na Bélgica eles eram fechados. Até na Igreja, antes de fazer o sinal da cruz, as pessoas conversavam! Na Bélgica, faz-se o mais completo silêncio, compara.

SANTA TEREZINHA
Padre Chico foi trabalhar na Paróquia Santa Terezinha e desde então está sempre ao lado de quem precisa – que ele chama de “irmãos e irmãs socialmente excluídos”.
Atuou na Capela Nossa Senhora do Rosário, no Morro do Cipó; na capela de Santa Rita das Palmeiras, então zona rural.
- Lá tive minha primeira decepção como europeu. Ninguém, do poder público e da igreja, quis nos ajudar a reformar a capelinha, que estava quase desmoronando e apresentava perigo de vida para as crianças. Então apanhei um martelo, fizemos um mutirão e demolimos a capela, que tinha grande valor histórico.
Atuou na Igreja de Santa Rita de Cássia, no Jardim Independência. Tem muita saudade da Igreja Deus é Amor, na Vila Carvalho, então maior foco de violência da cidade. Lá, teve entreveros com a polícia, quando acusava sem provas ou prendia sem mandados. Com recursos vindos da Europa, acabou com uma favela, erguendo 52 casas em regime de mutirão, ao longo de três anos.
Depois, no Parque Industrial Tanquinho, atuou na capela Jesus Semeador. No início dos anos 80, surge o Quintino I e o Parque Industrial Avelino Alves Palma. Logo depois, o Quintino II, o Simioni e o Avelino Alves Palma, todos dentro da área da Paróquia de Santa Terezinha.
Junto com um padre recém-ordenado, ajuda a organizar sete CEB’s - Comunidades Eclesiais de Base - hoje todas são igrejas, e formam juntas a Paróquia Jesus de Belém.

PÁROCO
Em 1988, padre Paulo retorna para a Bélgica e Chico assume como pároco. São tempos de novos desafios. Dom Arnaldo Ribeiro assume como arcebispo e incentiva a ação diocesana de padre Chico, que coordena todas as pastorais sociais. Atua no Cedhep - Centro de Direitos Humanos e Educação Popular. Coordena as Campanhas da Fraternidade, promovendo caminhadas de jovens da Catedral até o Teatro de Arena, no Morro de São Bento – com dom Arnaldo indo a pé, no meio da multidão. De uma das campanhas, contra o desemprego, em 1999, nasce a ong Crescer-Crédito Solidário, que opera com microempréstimos. No Jubileu de Juventude, em 2000, conseguiu reunir 5.000 jovens católicos em Batatais.

TERRA
Atualmente, além de vigário na Paróquia de Santa Terezinha, padre Chico é assessor da Comissão Pastoral da Terra. Atua nos assentamentos Sepé-Tiaraju, em Serrana, e Mário Lago/fazenda da Barra, em Ribeirão Preto. E há 17 anos dirige a Ong Sonho Real, um núcleo assistencial e promocional localizado no Tanquinho e que atende 55 crianças de três a seis anos, de famílias carentes.
Aos 58 anos, padre Chico se diz realizado.
- Já tenho mais tempo de Brasil do que de Bélgica. Foram 7 anos na Alemanha, 21 na Bélgica e quase 30 de Brasil. Encontrei aqui em Ribeirão Preto o espaço para realizar meu objetivo de vida – me colocar a serviço dos irmãos e irmãs socialmente excluídos.
Voltar para a Bélgica, só a passeio, em visitas familiares, de três em três anos – chegou da última em agosto.
- E minha mãe já fez onze viagens ao Brasil, para temporadas de até quatro meses. Mas lá me sinto como um peixe fora d’água. A igreja não é mais a mesma de minha juventude e a sociedade é tão altamente tecnológica e competitiva que me sinto burro. E além do mais, não tem mais boteco, explica padre Chico que, como um legítimo belga, é um admirador de uma boa cerveja.

Escrito por NICOLA TORNATORE
Foto: MATHEUS URENHA
Estraído do Jornal A Cidade

ENTREVISTA COM PADRE CHICO

Meus compadres e minhas comadres.
Conheçam um pouco do pensamento desse nosso grande amigo e companheiro, Pe. Chico, através de uma entrevista que concedeu ao site da Arquidiocese.

1. Como você analisa o resultado dessas eleições 2006?

Em primeiro lugar gostaria de alertar contra o perigo de conclusões unilaterais. Com isso quero dizer três coisas:

1. me parece que não podemos considerar os vencedores como totalmente vitoriosos e nem os derrotados como se tivessem só perdido;

2. deve-se levar em conta que existem nos resultados obtidos claras diferenças conforme região e Estado;

3. torna-se necessário uma avaliação distinta no que diz respeito àquilo que aconteceu no primeiro e o que ocorreu no segundo turno.

Isso tudo tenha provavelmente a ver, em grande parte, com o tamanho do Brasil que, além de possuir uma extensão geográfica imensa, junta também realidades sociológicas bastante diferenciadas. Além do mais precisamos reconhecer que os paradoxos e os contrastes continuam caracterizando e acompanhando a nossa identidade nacional.

Ilustremos agora em seguida essa introdução preliminar com alguns exemplos:
No novo mapa político desenhado pelas eleições realizadas cada um dos três maiores partidos pode comemorar importantes conquistas:

a) O PT por ter conseguido a reeleição do presidente Lula e uma representação estável no Congresso Nacional (83 deputados e 11 senadores), apesar de todas as CPI’s da corrupção e da sofrida perseguição por parte dos mais poderosos meios de comunicação social.

b) O PMDB por alcançar a maior bancada na Câmara Federal (89 deputados) e o maior número de governadores de Estado (7); dentro do nosso sistema presidencialista isso significa que ele está com o poder político mais relevante.

c) o PSDB que, mesmo sendo frustrado na sua expectativa de ganhar novamente a presidência da República, governará 6 Estados, que juntos equivalem a 43% do total de eleitores do Brasil e 51% (!) do total do PIB do país (cerca de R$ 793 bilhões)


- Na Câmara dos Deputados houve uma renovação de 47% para o próximo mandato; o índice é superior ao verificados nas duas eleições anteriores – 1998 e 2002. Dos 236 novos eleitos, 41 já foram deputados em outras legislaturas e 195 o serão pela primeira vez. Esse quadro, no entanto, é de difícil interpretação: de um lado, foram reeleitos 53 deputados que respondem a processos ou estão sendo interrogados por algum crime; do outro, as urnas exprimem o desejo difuso de renovação ética pela reeleição de parlamentares que se empenharam em favor da moralização dos costumes políticos e na rejeição de parlamentares com imagem negativa, como Severino Cavalcanti e Nei Suassuna. Também não podemos perder de vista que o percentual de votos nulos cresceu 66%, e o de brancos, 34%, em relação à eleição passada.


- As surpresas decepcionantes relacionadas aos deputados federais mais votados no nosso Estado de São Paulo, que não é apenas o com o maior eleitorado do país mas também o economicamente mais forte (Maluf, Clodovil, Enéas,...), e à volta no cenário político nacional de gente como Fernando Collor, são altamente compensadas pelo fim do ciclo biológico (termo usado pelo governador em exercício de São Paulo, o Cláudio Lembo) de oligarquias do PFL que representam a mais declarada "direita". Trata-se das derrotas sofridas pelo senador Antonio Carlos Magalhães na Bahia, pelos aliados do senador Marco Maciel em Pernambuco, pelos Bornhausen que desapareceram da política de Santa Catarina e pela Rosana Sarney que caiu no Maranhão.


- Entre o primeiro e o segundo turno houve uma mudança significativa quando analisamos a votação que os dois postulantes principais à eleição presidencial receberam: Lula cresceu mais de 12% e Alckmin perdeu quase 2,5% dos votos válidos. Obviamente isso se deve a um conjunto de fatores. Arrisco-me a mencionar os seguintes: Lula faltou ao debate derradeiro na TV Globo do primeiro turno, mas participou de 4 realizados em vista da disputa no segundo turno, conseguindo convencer melhor; os votos dados ao Cristóvão Buarque e à Helena Heloísa no primeiro pleito não migraram para o Geraldo Alckmin no segundo, apesar das declarações desfavoráveis de ambos à candidatura do Lula; o marketing político de Lula no intervalo entre dia 01/10 e dia 29/10 foi bem superior ao de seu adversário; o segundo turno ajudou o povo a entender e discernir melhor que se tratava de duas candidaturas de orientações diferentes quanto ao papel do Estado, ligados a partidos formados ao final da ditadura militar e com forte marca paulista: de São Paulo ao sul, centro e oeste do país (até o Acre), os eleitores preferiam quem prega menos Estado, menos impostos, maior autonomia dos estados federados, menos empresas estatais, mais capitalismo liberal, ALCA e volta à política externa de FHC / os estados do Norte (com exceção de Roraima) e Nordeste, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo sufragaram o candidato que estancou as privatizações, orientou a política externa para as relações com países emergentes e os vizinhos, cobrou mais impostos e empreendeu política social de transferência direta de renda para os mais pobres.

2. Qual deve ser a maior preocupação do próximo governo na área social?

Convencido de que o Brasil vive um longo período de crise, quero dar voz aos movimentos sociais que, através da sua Assembléia Popular, da coordenação dos mesmos (CMS) e da Semana Social da CNBB, apresentam várias propostas, entre as quais destaco as seguintes:

SISTEMA POLÍTICO
Queremos um país que crie e utilize mecanismos de participação e decisão direta da população nas várias instâncias do poder político e social, construindo uma verdadeira democracia popular participativa. É preciso regulamentar os plebiscitos, referendos e consultas populares, para tomada de decisões de importância para o povo.

DIREITO DE TRABALHO
O Estado deve garantir a todos o direito ao trabalho. Como condição de cidadania plena, como direito fundamental de realização humana. E criar condições para que seja um trabalho produtivo, criativo, não alienado e voltado para as necessidades da maioria. Deve garantir salários dignos para todos os trabalhadores, na ativa e aposentados.
O Estado deve garantir os direitos sociais que constam da Constituição e são amplamente desrespeitados, como o acesso universal à Previdência, a garantia de ampla organização sindical e sem discriminação de qualquer tipo.

REFORMA AGRÁRIA
A nação, por meio do Estado, do governo, das leis e da organização de seu povo, deve zelar permanentemente pela soberania, pelo patrimônio coletivo e pela sanidade ambiental. É preciso realizar uma ampla reforma agrária, popular, para garantir acesso à terra a todos os que nela querem trabalhar. Deve-se garantir a posse e o uso de todas as comunidades originárias, dos povos indígenas e dos quilombolas. E também estabelecer um limite máximo no tamanho da propriedade da terra, como forma de garantir sua utilização social e racional.
É preciso reorganizar a produção agrícola nacional tendo como objetivo principal a produção de alimentos saudáveis, para toda a população e aplicando o princípio da soberania alimentar. A política de exportações de produtos agrícolas deve ser apenas complementar, pois prioridade absoluta deve ser o combate à fome e à miséria existentes dentro do próprio Brasil.

EDUCAÇÃO E CULTURA
A educação e a elevação do nível cultural, do conhecimento, de valorização dos saberes populares, é condição fundamental para a realização dos brasileiros como seres humanos plenos, com dignidade e altivez. Seremos um país desenvolvido e uma sociedade democrática somente se conseguirmos implementar e garantir o direito à Educação pública e gratuita, em todos os níveis, a toda a população. Precisamos de um sistema educacional que priorize a realização humana e não apenas treine para funções técnicas.

SAÚDE PÚBLICA
O Estado deve garantir e defender a saúde de toda a população, implementando políticas públicas visando especialmente medidas preventivas às doenças. O sistema de saúde pública deve ser ampliado e melhorado, combinado com o ‘Programa de Saúde da Família’.
O Estado deve garantir acesso a atendimento médico-odontológico e a medicamentos gratuitos a toda população necessitada. Deve combater todas as práticas que mercantilizam o atendimento de saúde. Deve organizar um processo de formação massiva, ampliando o número de profissionais na área de saúde, de agentes populares de saúde a médicos e especialistas.

Quero acrescentar ainda algumas considerações:


- Por mais louváveis que sejam os programas sociais instalados durante o primeiro governo Lula como, por exemplo, "Bolsa Família" e "ProUni", deve-se agora em diante fazer tudo que for possível para melhorá-los e investir prioritariamente em verdadeira promoção humana.


- Outros programas, como esse do ‘benefício de prestação continuada’ que contempla idosos e deficientes integrando famílias cuja renda não ultrapassa quatro salários mínimos, precisam ser re-avaliados no que diz respeito aos critérios estabelecidos.


- É certo que é sempre melhor ensinar a pescar do que distribuir peixes, mas não é possível se fazer tudo. É necessária uma certa política de assistência caridosa, porque a fome não espera. No Brasil, ainda há milhões de famintos. Mas não se pode conformar a política ao assistencialismo e atender a população num "estilo bombeiro", apagando incêndios imediatos. É preciso uma política social mais estruturada, que parte para as raízes do problema e das raízes para a solução: terra no campo, combate à especulação urbana de terrenos, queda nos juros, frear a cobiça do agronegócio, pensar mais no mercado interno e menos na exportação excessivamente capitalista. E, enquanto isso, continuar ajudando aqueles que possuem uma necessidade urgente.


3. Como você vê o papel do cristão no atual cenário político brasileiro? Como despertar a consciência política em nossas comunidades?

Certamente essas questões são de uma enorme importância para a missão evangelizadora da Igreja. Sobretudo quando nos preocupamos com a vigilância diante do eminente perigo de propostas religiosas alienadoras.
Para iniciar a minha resposta quero citar Frei Betto:
"A política é laica, ou seja, neutra em matéria de religião. Ela visa o conjunto da população, sem levar em conta as convicções religiosas do cidadão e da cidadã. A todos o governo tem a obrigação de servir, assegurando-lhes direitos, proteção e o mínimo de bens para que possam viver em dignidade. Se nenhuma religião tem o direito de tutelar a política, isso não significa que a política deve se confinar no pragmatismo do jogo de poder. A política se apóia em valores éticos. E nós, cristãos, temos como fonte de valores a Palavra de Jesus. É à luz do Evangelho que avaliamos todas as esferas da atividade humana, inclusive a política que é a mais importante delas, pois influi em todas as outras. Para Jesus, o dom maior de Deus é a vida. Está mais próxima do Evangelho a política que favorece condições dignas de vida à população toda" (Frei Betto, ‘Carta aberta aos Eleitores Cristãos’ – outubro 2006).
Lembro-me, nesse sentido que em 1992 o Movimento pela Ética na Política considerou a concentração da renda e o alimento transformado em moeda como as mais graves expressões de corrupção no país. O pecado persiste até hoje, sem notável indicação de mudança! Ao lado das grandes riquezas que estão sendo produzidas (aliás, na maioria das vezes na base do capital especulativo – vejamos os lucros astronômicos dos bancos!), agrave-se a degradação ambiental e cresce a exclusão social gerando fome e marginalização. Vivemos numa sociedade abortiva e cada vez mais violenta e cínica. Por isso acredito que o maior desafio para nós, cristãos, é exigir que a política tome a frente na construção de uma sociedade mais solidária através da justiça social, da criação de oportunidades mais igualitárias no sistema educacional e de promoção da cidadania no sentido mais amplo possível deste termo. Sem erradicar o analfabetismo e melhorar a qualidade do ensino público o Brasil não sairá do atoleiro da corrupção e da miséria. O Papa João Paulo II já nos advertia que o analfabetismo quase sempre é explorado econômica e politicamente!
Temos que acolher na vida de nossas comunidades cristãs, de maneira cada vez mais efetiva, os apelos lançados pelos próprios bispos. Nós os encontramos presentes, por exemplo, nas ‘orientações para ações concretas’ conforme apresentadas no Documento 82 da CNBB sobre "Eleições 2006" – confere-se as páginas de 43 a 48.


4. A Igreja tem contribuído para a reflexão e a formação de cristãos para atuar na política?

De acordo com a sensibilidade de Javé expressa na Bíblia: "Eu vi muito bem a miséria do meu povo... ouvi o seu clamor contra os seus opressores e conheço os seus sofrimentos" (Ex 3,7), a CNBB tem se pronunciado, ao longo das últimas décadas, sobre momentos eleitorais. Como pastores, movidos por compaixão e desejo de servir, dirigindo-se aos eleitores, incentivando a sua efetiva participação na escolha de seus participantes, e apresentando aos candidatos propostas para a construção de políticas estruturantes, que assegurem o desenvolvimento da nação com inclusão e justiça social, os nossos bispos certamente deram uma contribuição bastante valiosa. Além do mais, com seus documentos do tipo "Exigências cristãs de uma ordem política" e uma Campanha da Fraternidade inteiramente dedicada ao tema da política, eles ofereceram subsídios magníficos para uma formação contínua em relação à nossa responsabilidade política enquanto cristãos e enquanto comunidades cristãs. Assim ajudaram repetidas vezes a nos despertar para uma grande verdade que consiste na afirmação de que o processo democrático é muito maior que apenas o ato isolado de votar!
Parece-me, no entanto, impossível avaliar em que medida tudo isso recebeu acolhimento na base e até que ponto as paróquias, os movimentos e as diversas pastorais se esforçaram para colocá-lo na prática.
A impressão que a gente leva é que existe muita omissão! Também sentimos a cada dia que passa que a conjuntura eclesial não é muito favorável às pastorais sociais. Temos hoje uma Igreja onde majoritariamente os movimentos trabalham a subjetividade do indivíduo e o lado sentimental da fé. Assistimos a muitas expressões de culto festivo, superficial e impacto momentâneo, chegando até a extremos quando o clima situa-se na linha de "discoteca religiosa"! Sentimos falta de uma espiritualidade mais profunda e de uma teologia "pé no chão" que incentiva para um engajamento cristão mais encarnado na realidade.
Essa situação toda talvez represente uma oportunidade para a Pastoral da Comunicação tentar a realização de um sério levantamento aqui na própria Arquidiocese no intuito de descobrir as causas. Poderia, por exemplo, ser através da elaboração de um questionário, onde aparecem perguntas do seguinte tipo:
- quantos encontros, reuniões ou debates foram realizados na comunidade a respeito da relação entre fé e política e das eleições passadas?
- qual trabalho de pastoral social existe na paróquia e como esse pode ser avaliado diante da comparação entre ‘assistencialismo’ e ‘promoção humana’?
- como os movimentos se situam diante dos desafios enfrentados pelas pastorais sociais da nossa Igreja?
- qual foi a participação efetiva de comunidades / movimentos / serviços pastorais nesses últimos anos à Campanha da Fraternidade?
- o que foi feito para incentivar a participação à palestra do Dr. Plínio de Arrudo Sampaio, organizada pelo CEARP e os seminários?
- quais os últimos três livros que o padre / diácono responsável pela comunidade leu? o que ele faz para cuidar de sua reciclagem filosófica e teológica?
- o que a Arquidiocese e as Foranias têm investido no campo da formação de lideranças leigas em vista dos compromissos sociais e políticos?


5. No contato com as pessoas nota-se uma desconfiança muito grande diante dos políticos. O que precisamos fazer para romper esta desconfiança por parte do eleitor? É possível acreditar nos políticos?

Estava evidente a falta de entusiasmo do povo brasileiro com as eleições do mês passado. Nem mesmo a programação na TV despertou o interesse das pessoas. O que ocorreu? Creio que tivemos uma verdadeira aula de realismo nos últimos tempos. O Legislativo não mostrou competência no trato dos desvios cometidos por políticos no exercício de seus mandatos concedidos pelo povo; o Judiciário não mostrou agilidade na implementação de decisões; o Executivo corrompeu nossas utopias, se mantendo marginal, desplumado de sua função primordial. E o que é pior, não se trata de um fenômeno recente, pois o povo vem sendo ludibriado há anos!
Todavia, não adianta ficar perplexo e imóvel! É preciso aprender a lição. Nunca houve uma tomada de consciência tão clara de que a construção da democracia não é feita de sonho, mas de luta perseverante. O principal ingrediente para a conquista da cidadania plena é a participação da sociedade civil organizada. Só assim será possível dar suporte aos bons projetos políticos e evitar que recursos públicos sejam sujeitos a um malabarismo na procura de indevido interesse próprio. Na verdade, tempo de eleição no Brasil sempre foi tempo de muito gasto (nas penúltimas eleições uma imensidão de ‘outdoors’ caríssimos), barulho excessivo e festa com distribuição gratuita de churrasco e cerveja abundantes para comprar votos. No entanto, a festa só deve acontecer se, de fato, o povo se fizer representar nos cargos de responsabilidade maior, de tal modo que as verdadeiras necessidades da maioria sejam atendidas. Por isso, a alegria maior deve aparecer depois e não antes das eleições e conseqüentemente o voto deve ser consciente. Dia de eleição é dia de atividade cívica, é dia de decisão como fruto de reflexão e de discussão, é dia de compromisso! Ao eleger um representante, repartimos com ele a cumplicidade para defender a democracia, a seriedade na política e, sobretudo, o bem comum.
Vivemos atualmente no Brasil um momento singular. A crise nos arremessou a um novo patamar na vida política. Se, de um lado, ficamos desolados ao perceber tantos erros e atitudes irresponsáveis, por outro lado, nossas instituições foram preservadas, e a democracia ainda nos garante a oportunidade do exercício livre do voto. Precisamos, portanto, sempre procurar fazer da urna o lugar da nossa demonstração de fé no futuro da nação.
Acompanhando de mais perto a conduta e a prática de nossos políticos nos três níveis – municipal, estadual e federal – não resta dúvida que vamos descobrir quem é quem, quem defende o que, quem merece e quem não merece a nossa confiança. Vamos reconhecer também os homens e as mulheres que em sintonia com a famosa afirmação do Papa Paulo VI de grata memória: "A política é uma das mais altas expressões da caridade cristã", contribuem como políticos profissionais para uma ordem justa, segura e duradoura.


6. Qual é a mensagem que você gostaria de deixar para os internautas?


Na verdade, são três e quero emprestá-las de pessoas que levam a minha profunda admiração:
- "Não devemos computar realizações para escolher em quem votar. Não acredito nessa contabilidade. Houve mesmo um tempo no Brasil em que se dizia a favor de um candidato: "Ele rouba mas faz". A realização justificava a trapaça. O que devemos querer são candidatos que sejam capazes de fazer as pessoas sonhar, candidatos cujo rosto irradie a pureza dos que vão morrer. Para que o povo ressuscite dos mortos. Vi um pouco disso no rosto do Cristovam Buarque. Sua campanha, de início, estava tocada pela morte. A despeito disso continuou, movido pelo sonho. O rosto tranqüilo, as palavras mansas, ele me sugeria pureza de coração. E pureza de coração, como disse o filósofo Kierkegaard, "é desejar uma só coisa". Ele desejava uma só coisa: educar o povo para que ele seja feliz e se torne senhor do seu próprio destino" (Rubem Alves, psicanalista, escritor e educador: "Pureza dos que vão morrer..." – ‘Folha de São Paulo’, 18/10/2006).
- "Papai tem atuado de forma serena e transparente, sem juízos sumários e parciais, reconhecendo que os erros nunca estão de uma parte só – embora contra ele não pesa uma única denúncia, um único fio de suspeita. Defende o patrimônio nacional, os direitos da juventude e dos trabalhadores com as virtudes da tolerância, da compreensão e do respeito. Médico formado pela faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, tanto no seu coração profissional e humano como nas preocupações que dirigem sua atuação política ecoam os sofrimentos do mundo. Procura sempre abrir caminhos de esperança através de trabalhos e projetos em favor das populações sofridas dos países árabes agredidos pelo imperialismo norte-americano, da insistência humanitária pela suspensão do embargo econômico contra Cuba e pelo fim da invasão cruel de terras palestinas". (Juliana, psicóloga e filha do deputado federal Jamil Murad em carta aos amigos – 13/09/2006).
- "Espero que a política agrária e a política agrícola, tendo a segurança alimentar e nutricional como objetivo, sejam definidas a partir das respostas a estas perguntas: O que plantar? Por que plantar? Como plantar? Para quem plantar? Em geral são os pequenos e médios produtores que abastecem a mesa do povo em qualquer recanto da Terra. Aliás, o Brasil não é problema, mas solução para o problema da fome no mundo. Espero que o Presidente Lula, no seu segundo mandato, possa superar as contradições que caracterizam o Estado Brasileiro e afetaram bastante seu primeiro governo. Não se trata apenas de combater a corrupção, mas cultivar uma proposta ética de desenvolvimento. Impossível servir a dois senhores, o Mercado e o Povo. Voto por uma economia com mercado, justa e solidária. Reine a Ética, governe a Política e submeta-se o Mercado. Cultivando a sabedoria, a coragem, a ousadia e a humildade, com a graça de Deus e a participação do povo, o nosso inteligentíssimo irmão metalúrgico poderá realizar uma grande gestão. Quando o pão é partilhado com o faminto e o injustiçado, brilhe a Luz! (Isaías 58,6-8). Não tenhamos medo de sermos felizes!" (Dom Mauro Morelli, Bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias: "Declaração de Voto" – ‘Boletim de Notícias da Adital’, Dia da Criança-12/10/2006).

Padre Francisco Vannerom, assessor da pastoral "Fé e Política", uma semana depois das eleições e após avaliação compartilhada na última reunião da equipe arquidiocesana na terça-feira passada (7/11).


Ribeirão Preto, novembro/2006.

COISA DE ARTISTA


"Outro dia desses me disseram que eu tinha cara de artista. Eu não estava nos meus melhores dias, e resolvi perguntar como é que era a cara de um artista.

- Bem, artista é tudo assim, ué.

- Assim como?

- Cabeludinho, barba mal feita, sabe como é?

- Não, não sei como é. Como é?

- Bem, todo artista tem esse jeito aí, que você tem, uns negócios diferentes.

- E que negócio você acha diferente em mim?

- Você... hã... usa umas pulseiras, por exemplo.

- Ah, pulseira é um negócio esquisito?

- Bem, é e não é.

- Mas é ou não é?

- Tudo bem, é. Usar pulseira é um negócio esquisito.

- Quer dizer que a senhora sua mãe é esquisita? Porque ela usa pulseira, não usa?

- Olha, eu estava aqui, na maior das boas intenções, e você vem aí, botar a mãe no meio...

- Eu não estou botando mãe no meio. Só queria saber como é a cara de um artista.

- Artista é assim, gosta de confusão, que nem essa que você tá fazendo agora.

- Ah, artista gosta de confusão?

- Você sabe muito bem do que eu tô falando.

- Não, não sei, do que é que você está falando?

- Eu tô falando que a gente olha para o cara e vê logo que ele é artista. Por causa do cabelo. Das roupas estranhas. Da barba. Artista é assim, sempre meio cabeludo, meio barbudo, com umas roupas estranhas. E gosta de fazer confusão...

- Quer dizer que o Bin Laden é um artista?

- O Bin Laden?

- É, o Bin Laden. Ele tem um cabelo esquisito, é barbudo, está sempre com aquelas roupas estranhas. E se tem um cara que adora uma confusão, é o Bin Laden. Então ele é um artista?

- Mas que coisa, é claro que o Bin Laden não é um artista. Também não é todo mundo que é artista.

- Ah, que nem o Drummond, né? O Carlos Drummond de Andrade também não era um artista. Por que o Drummond sempre usava terno. O cabelo curtinho. Parece que sempre tinha acabado de fazer barba. Um homem assim não podia nunca ser um artista, não é mesmo? Talvez ele fosse um... engenheiro? Ou um advogado. É, o Drummond tem cara de advogado. E o Lula? Ele tem cara de quê?

- O Lula?

- É, o Lula, o nosso presidente. Ele tem cara de quê?

- Olha, você não me venha com esse papo de artista...

- Papo de artista? Quer dizer que artista tem papo? E me diz aí, como é papo de artista?

- Ah, vai te catar!

- Catar? Artista também cata, é?"

Artur de Carvalho
(Extraído do site da Agência Carta Maior)

Ilustração do autor

13.11.06

OSPRA!!!


O MUNDO SUBMERSO

Certa feita eu tomava um chopp, sentado a uma mesa, no Templo da Cidadania, em Ribeirão Preto e um senhor sentou-se junto a mim para uma prosa. Conversa vai conversa vem eu acabei abordando uma fala que dizia sobre a Ponte do Funil.
Para quem não sabe, essa ponte era apoiada em rochas e unia o município de Lavras ao de Perdões, no Sul de Minas, na região do Alto Rio Grande, onde o rio afunilava e descia barulhento no meio das pedras.
Era ali para onde a piracema levava todos os peixes.
Quando esse senhor soube da minha história com aquele lugar, seus olhos encheram-se de luz e com muita alegria falou-me do quanto era feliz nos seus passeios domingueiros na Ponte do Funil.
Mas depois ele ficou muito triste quando minha prosa foi contando o que aconteceu alí e que colocou tudo embaixo d’água, até a rocinha que meu irmão, Paulinho Martins, cuidou e deu trato por quase duas décadas. Mesmo morando em Campinas, pertinho de São Paulo, Paulinho dava um jeitinho de estar ali de costumeiro cumprindo esse seu ofício.
Plantou muita árvore, madeira de lei. fez bem-feitorias, inclusive na casa, fez paiol, plantava um feijãozinho, um milho verde, criava umas galinhas, sem falar numa hortinha, bem surtida que cultivava no fundo do quintal.
Paulinho é muito caprichoso e o sítio era muito bem cuidado, inda mais com a colaboração e o toque de Ana Rosa.
Lá, quando o sol se recolhia, a noite chegava, trazendo a cantoria dos bichos no mato em volta. E a gente, embaixo da luz do lampião, em companhia do velho fogão de lenha e de uma cachacinha misturávamos a cantoria dos bichos à música de Zé Coco do Riachão, Pena Branca e Xavantinho, Wilson Aragão, Elomar, Paulinho Pedra Azul, Vital Farias..., construindo assim aquela cantoria que era de todo o universo. A roça ficava no município de Perdões-MG, na margem direita do Rio Grande. E o nome do lugar, Sítio do Bié.
Hoje não existe mais. Que tristeza! A companhia de eletricidade construiu uma usina e a represa cobriu tudo. Afogou nossa alegria. Mudou a feição do lugar. Quantas criaturinhas de Deus não pereceram afogadas quando a barragem se fechou e o rio foi impedido de fazer seu curso e começou a inchar...?
Muitas pessoas presenciaram tudo e perceberam o silêncio que reinou quando a inundação cobriu as pedras do rio e revelou a agonia do lugar perante a fatalidade das águas que subiam engolindo estradas, casas, ranchos e sítios, separando o que a ponte unira por quase um século.
Nunca mais cruzaríamos a Ponte do Funil; nunca mais aquele peixinho frito e aquela prosa gostosa no bar de seo Vicente, com Célia e com Dute, e com Camilo no rancho “Nenhum de Nós”.
Há dois quilômetros dali, descendo o rio pela estradinha de chão batido que há muito tempo atrás suportava a linha do trem, ficava a “rocinha”.
Na metade do caminho o bar de Carlinhos Timburé, perto da roça o bar do Nelson, na porteira, o pé de aroeira e chegando na casa o pé de cidra que deu tantos frutos para dona Lilia fazer tantos doces deliciosos.
Há meio século que falavam da barragem que haveria de vir. Alguns achavam que não viria. Outros que era questão de tempo. Esse passou. E enquanto o tempo passava a gente dali passava o tempo na pesca. Subsistência.
O rio dá. O rio tira. O rio é tudo. O rio é o mundo.
O rio é a alegria de quem chega e a tristeza de quem não volta. Rio de lágrimas! Rio das mortes! Rio da vida!!!
Rio Grande, eternamente, represado dentro de nós. Rio generoso. Até jaú, um despotismo de peixe de couro, seo Domingos Pescador, um nativo, já havia pescado ali. Setenta e cinco quilos!
Seo Nelson Veloso também pegou um e levou o jaú de bicicleta para todo mundo ver e não dizer depois que era estória de pescador. E aliás, deve ser isso que vocês estão pensando, né? Mas não é não! Jaú é isso mesmo. Eu até pensei que fosse filhote...!
A flora e a fauna preservadas exuberavam-se mostrando uma infinidade de espécies: tiziu, tucano, tico-tico, sabiá, gavião, tatu, jaú, jacarandá. vovô-do-brejo, garça, dourado, piau, mogno, pau-brasil...
No quintal da roça, manga ubá, tão doce que eu bebia água depois de chupá-la. Banana era a “São Tomé”, só vendo para crer.
Foi nessa roça que Izabel conquistou distâncias dando seus primeiros passos.
Não tinha luz elétrica, se quisesse ouvir rádio tinha que ser rádio de pilha. Luz era só a do lampião. A gente se gabava muito de não ter luz alí. Alguns moradores ribeirinhos já haviam estendido a rede elétrica para o uso lá seus. Só a gente relutava. Éramos contra essa tal de rede elétrica, parecendo até que a gente estava adivinhando que mais tarde, por causa dessa tal eletricidade perderíamos o nosso cantinho bom do mundo.
Que progresso é esse que cobra tão alto a sua realização...!?!
A gente acordava com a passarinhada e dormia com o barulho do rio ao longe, lá embaixo, batendo nas pedras do caminho de suas águas.
O rio levou alguns de nós e a represa afogou um pedaço de quem ficou.
E naquela mesa de bar, esse senhor que não me disse o seu nome, não pode conter suas lágrimas. Chorou tanto que parecia o Rio Grande escorrendo dos olhos dele e falou, já saudoso, que “aquele lugar só irá existir agora na memória de nossas retinas”.
Enxugou suas lágrimas e foi-se embora, em silêncio, olhando o chão.
Somos o que restou daquele mundo submerso.
- Ospra!!!

Extraído do livro (a ser publicado) "Dedinho de Prosa" de Jeziel Pousa Corrêa de Paiva

10.11.06

CONTA UM CAUSO, CUMPADI.

Meus cumpadres e minhas comadres.

Dentro de pouco tempo, espero, vou estar fazendo o lançamento de meu primeiro livro. Estou atrás de uma maneira viável para quem dispõe de parcos recursos como eu, fazê-lo.
Eu fiquei sabendo que pela internet também publica-se livros mas eu nunca vou dar conta de ler um livro inteiro com os "ói" grudados dessa telinha aqui. E tenho certeza que muitos de vocês também não. Mas, um causo ou outro não tem problema, né. A gente lê. E pensando assim vou transcrever aqui no blog um causo que conto no livro que espero lançar brevemente.
É um causo que meu irmão Ismael gosta muito e pediu-me que o incluisse no livro. Então lá vai.

JOÃOZIM MILAGRÊRO
Um certo fazendeiro de nome Aristides, dono de um rebanho de umas cem cabeças, lutava com dificuldades contra uma estiagem que naquele ano judiara de todo mundo. Aquela seca prolongada deixou o gado desse nosso fazendeiro com pouco peso e fez cair sua produção leiteira. Para aumentar ainda mais os problemas de seo Aristides, seu sofrido rebanho adquire uma doença estranha que atacava as pernas dianteiras dos animais e estes, não se sustentando em pé, arriavam no chão.
O quadro foi ficando ainda mais sinistro quando a urubuzada começou a sobrevoar o pasto esperando a hora daquele banquete farto que se aproximava.
Seo Aristides já havia tentado de tudo, coitado. Gastou todo seu dinheiro com veterinários e remédios e não havia como controlar aquela doença maldita. Até que um vaqueiro, conhecido por Romão, resolve sugerir a seo Aristides que lançasse mão do último recurso que havia.
- Patrão. Mode que o sinhô mandô que vinhesse aqui tudo quanto é dotôr e ninhum deu jeito, se for do consentimento de vosmicê, eu cunheço seo Joãozim Milagrêro: um homim franzino, magricelo, um caquim de home. A gente assuntano, anssim, num dá nada por ele, mas o home é rezador e benze que é uma beleza.
- Mas cê acha que essas coisa de reza arresorve, Rumão?
- Oia patrão. Meu caçulo tava esmegraceno mais dipressa que seu gado, ficano seco, num comia, sem sustança prá quarqué coisa. Levei lá no homim e ele curou. Me falou que era um tár de macimioto. Arribou o minino!
- Então busca o home, Rumão! Quanto tempo cê acha qui tá aqui de vorta q’esse tár Joãozim Milagrêro?
- Eu saino ind’agurinha, patrão, que o sór tá se pondo, carculo que aminhã, na barra do dia, eu mais ele tamo aqui pisando em suas terra.
Entonce vá, Rumão. Traga cá o tár.
Com permissão do patrão, Romão selou o melhor cavalo de seo Aristides e rumou em disparada à procura do benzedor. Era o último recurso.
Naquela noite seo Aristides nem dormiu. Dona Madalena, sua esposa, fez a janta, depois lavou os trem e foi dormir. Seo Aristides ficou na varanda da casa com o olhar perdido no pasto lá adiante vendo os vultos caídos de suas rezes iluminadas pela lua cheia.
Romão e o benzedor chegam junto com o sol. Dona Madalena já tinha passado o café que foi servido junto com um delicioso bolo de fubá. Feito o desjejum foram os três ao pasto observar de perto o que estava acontecendo com aquele gado.
Depois de muito assuntar, seo Joãozim Milagrêro, rompe o silêncio e diz na maior rapidez:
- Nome do pá, du fi, spritu sant’amém! Creim Deus pá tô poderôs criadô du cé e da tér e na virge Maria nossa mãe prá todo o sempr’amém, ôch!
E fez o sinal da cruz três vezes. Uma na testa, outra na altura da boca e outra começando na testa indo para o peito e nos ombros. Depois se arrepiou todo e deu um sacolejo de corpo inteiro parecendo cachorro quando acorda, e falou à seo Aristides.
- Eu curo, mas perciso d’ua fêma sadia pro mode fazê a benzeção nas perna dela.
Procuraram uma vaca ou uma novilha pelos pastos e não acharam uma sequer que estivesse sadia. Todas haviam pegado a tal doença.
- A cachorra serve – disse o curandeiro.
- Aqui num tem cachorra não, só tem esse perdiguêro aí – disse seo Aristides, apontando para o cachorro da fazenda.
- Tô falando disso não. Tõ falando da sua muié – disse Joãozim Milagrêro.
- Oia o respeito! Falou seo Aristides.
- Né farta dele não, siô! É somente anssim que se cura dessa praga de doença má que suas rês pegô. Se tá achano farta de respeito eu vou-me embora.
- Carece não – disse seo Aristides. – Sendo com respeito não vejo mal.
Então voltaram para a casa da fazenda e seo Joãozim Milagrêro se trancou no quarto com dona Madalena enquanto seo Aristides ficara do lado de fora com o ouvido colado na porta e os olhos lá no pasto. De repente ele ouviu a vozinha do benzedor:
- Pego nas canela prá alevantar as vaca amarela.
Nessa hora as vacas amarelas que estavam arriadas no chão começaram a se levantar e seo Aristides ficou maravilhado com o que vira.
- Uai, né qui o trem funciona...!
Dalí a pouco, novamente, a vozinha do seo Joãozim quebra o silêncio de dentro do quarto:
- Pego nos juêi prá alevantar os boi vermêi.
Não é que os bois vermelhos começaram a se levantar...? Seo Aristides abre então aquele sorriso e lança um olhar de agradecimento ao vaqueiro Romão.
De novo a vozinha do seo Joãozim:
- Pego nas côxa prá alevantar as vaca mocha.
E as vacas mochas todas se levantaram. Só que seo Aristides começou a se preocupar com dona Madalena dentro do quarto. Também pudera, as mãos do curandeiro estavam aos poucos chegando perto duma região que somente à seo Aristides era permitido acesso. Sua preocupação aumentou quando ele ouviu de novo a voz do Milagrêro lá de dentro do quarto:
- Pego na virilha prá alevantar as novilha.
Nesta hora seo Aristides, por precaução, irrompe subitamente para dentro do quarto e fala determinado para seo Joãozim Milegrêro:
- As vaca preta e os boi zebu cê pode dêxá morrer!

9.11.06

ANTROPOFAGIA EM DEMASIA ACABA COM TRADIÇÕES POPULARES

Poucos compositores brasileiros atingem o equilíbrio estético entre as tradições das culturas populares e o extenso universo eletrônico pop. Alceu Valença conseguiu. Em entrevista exclusiva a Agência Carta Maior, Alceu fala do espetáculo da próxima semana e de projetos futuros, da responsabilidade do poder público em definir políticas culturais para as tradições regionais e do vício antropofágico brasileiro.

Carlos Gustavo Yoda – Carta Maior

SÃO PAULO - Poucos compositores brasileiros conseguem atingir o equilíbrio estético entre as tradições das culturas populares e o extenso universo eletrônico pop. Alceu de Paiva Valença, de São Bento do Uma (PE), conseguiu. E hoje, depois de 36 anos de carreira, pode falar como poucos sobre o universo da indústria cultural e das manifestações populares pernambucanas.
Alceu estará no Rio de Janeiro, dia 11, e em São Paulo, dia 15, juntamente com dezenas de artistas pernambucanos para o espetáculo de lançamento do Carnaval de Recife, em uma iniciativa da prefeitura do capital pernambucana. Muitos ritmos serão lembrados e revisitados no repertório que traz do frevo ao maracatu. Além dele, o evento terá intérpretes como Lirinha, Lenine, Silvério Pessoa. Alceu acabou de gravar também um DVD de um show só de frevos realizado na praça do Marco Zero, em Recife, com 140 mil pessoas fantasiadas, que será lançado em dezembro.
O pré-carnaval e o lançamento do DVD reafirmam em uma só voz a necessidade da preservação das culturas populares brasileiras. “A cultura popular aqui ainda resiste dentro das pessoas, na alma, no coração. O verdadeiro que pulsa dentro de cada um. Agora, as coisas estão aparecendo depois da internet. É muito pouco o apoio para a cultura popular. Então o processo é natural, é do ser humano. As novas tecnologias apenas ajudaram a libertar isso”, afirmou esse “ateu comovido à procura de fé”.
Em entrevista exclusiva à Carta Maior, Alceu Valença falou do espetáculo da próxima semana e de projetos futuros, da responsabilidade do poder público em definir políticas culturais para as tradições regionais e do vício antropofágico brasileiro.

Carta Maior – Parece que as culturas populares estão em ebulição nos últimos tempos. É alguma tendência?

Alceu Valença – Não é tendência. Um país como o Brasil, com toda essa diversidade, tem tradições muito fortes. Um país que perde sua cultura popular se acaba. Existe em quase todos os lugares a desconstrução de suas raízes. E isso é claro resultado da hegemonia da indústria cultural norte-americana. Ligamos a televisão e só tem coisas de fora. A cultura popular aqui ainda resiste dentro das pessoas, na alma, no coração. O verdadeiro que pulsa dentro de cada um. Agora, as coisas estão aparecendo depois da internet. É muito pouco o apoio para a cultura popular. Então o processo é natural, é do ser humano. As novas tecnologias apenas ajudaram a libertar isso. Mas eu procuro um equilíbrio nisso. Eu não digo que precisamos nos fechar para o que vem de fora. Só que não podemos perder nossas referências. Cadê os seguidores do Cartola e do Nelson Cavaquinho? Eles estão se perdendo. Precisamos regar as fontes dos mestres populares.

CM – Mas de quem seria a responsabilidade, então, de fazer esse resgate de referências?

AV – Dentro de um mundo globalizado, cabe ao poder público mostrar as referências de tradição e identidade para seu povo. Atrás da culinária francesa, existe uma tradição. Assim como no tango argentino, o fado português, o rock norte-americano. E parece que o Brasil nega sua tradição como se fosse um pecado.

CM – Em uma entrevista, certa vez, o sr. afirmou que “de tanta antropofagia, o brasileiro acaba perdendo as referências”. Há um exagero antropofágico no Brasil?

AV – Perfeitamente. Colocam isso como uma pedra filosofal. Antropofagia sempre existiu. Isso não é uma tradição brasileira. Agora, a partir do momento que você começa a perder toda a sua referência, não existe identidade. O mundo não tem mais barreiras. Se a cultura regional e popular desaparecer, não há mais sentido em existir essas divisões entre países. Todos serão iguais. É sobre identidade que estamos falando. Não estou macaqueando os norte-americanos. Tenho um respeito profundo pelo rock, pelo blues e pelo jazz. Mas eu vejo que eles têm respeito por isso. Aqui as pessoas se justificam: eu faço uma mistura disso com aquilo. Que coisa babaca. Isso é uma bobagem. Não que as tradições não devam ser trabalhadas, mexidas e evoluídas. Mas com a velocidade que a indústria cultural massacra as coisas, não chegaremos muito longe. Você liga a TV a cabo e só vê coisas norte-americanas. E quando não é, não passa de uma imitação barata daquilo.

CM – E de que forma o poder público poderia interferir nisso?

AV – Sobre tudo precisa rever o que é paradigma cultural. Eu não falo essas coisas em meu nome. Eu já estou consagrado, todos os meus shows estão lotados. Mas é responsabilidade minha, também, pensar a cultura brasileira. Está faltando aparecer o artista brasileiro. Eu nunca tive tanto público quanto agora. Isso é sinal de que está faltando.

CM – Mas novas expressões boas existem, só que não aparecem...AV – É claro. Isso é o resultado de uma indústria cultural falida. Tem uma porção de gente fazendo música contemporânea brasileira, fundada no samba, no maracatu, no forró. Mas não é de bom grado de quem detém a indústria, de quem detém os meios de comunicação. Agora, quando o governo tenta intervir para melhorar as coisas, chegam esses colunistas dizendo que é stalinismo. Não passam de um bando de babacas (risos).

CM – E qual avaliação o sr. faz do Gilberto Gil no Ministério da Cultura?

AV – Os Pontos de Cultura são projetos excelentes, que valorizam as tradições populares e regionais. Agora todo mundo sabe que a verba do Ministério é pífia, e o Gil pouco pode fazer com isso. Mas ao menos fez. Agora, cabe que todo mundo coloque em discussão a comunicação. Tem que ter responsabilidade, tem que divulgar a cultura nacional. É difícil. Mas tem algumas coisas que podem ser feitas. Há de haver algum acordo com os meios para divulgar a cultura brasileira. A proposta de cotas em rádios e na televisão seria um grande avanço. Hoje em dia, as gravadoras não têm nem mais dinheiro para fazer clipes. A indústria cultural está à beira da falência. Há um buraco na programação, que está sendo explorado pelo que vem de fora. O jabaculê sempre existiu, e não se faz nada. E a pirataria corre solta e ninguém faz nada.

CM – No dia 11, no Rio de Janeiro, e dia 15, em São Paulo, o sr. vai participar de um espetáculo de lançamento do Carnaval de Recife. Como será a composição do espetáculo?

AV – O Carnaval de Pernambuco é sem dúvida uma coisa maravilhosa, com toda a diversidade de tradições e culturas. E a prefeitura do Recife está fazendo esse projeto de divulgação do carnaval. Vão participar eu, Silvério Pessoa, Lenine, Lirinha, Elba Ramalho, Orquestra do Maestro Spok, Maracatu Nação Estrela Brilhante, Lula Queiroga, entre outros tantos. Será um show dividido pelos intérpretes e em alguns momentos estaremos todos reunidos no palco. No Rio, vai ser no Circo Voador e, em São Paulo, no Citibank Hall. Ainda não sabemos se iremos levar isso para mais lugares.

CM – O que o sr. está desenvolvendo trabalho novo?

AV – O DVD é a grande novidade: Alceu Valença Marco Zero. Foi o show de maior público até hoje no Recife. 140 mil pessoas fantasiadas. E o show foi lindo, com participação do Silvério Pessoa, Daúde e Paula Lima, além da banda Spok. Tudo isso vai ser lançado em dezembro nas lojas.

CM – E o filme “Cordel Virtual”, em que pé que está?

AV – Está na agenda do dia. Hoje mesmo estava cuidando do roteiro. Já conseguimos captar uma parte dos recursos. Mas ainda estamos meio sem perspectivas de quando conseguiremos toda a verba para começar a gravar.

8.11.06

ROÇADO CULTURAL

Meus compadres e minhas comadres.
Crei este espaço na tentativa de arar esse chão prá fazer dele um roçado cultural e a gente poder ter mais um meio eficaz de exercer nosso ofício, que é lutar nessa guerra a favor da nossa cultura e contra essa industria cultural, que sempre prestou um grande desserviço ao nosso povo distanciando-o cada vez mais de sua verdadeira identidade.
Aqui vamos poder levar uma prosa gostosa, contar muitos causos, prosar sobre músicos e músicas boas, poetas e poesias, cantadores e suas cantorias, escritores, livros e eventos. Reproduzir artigos, crônicas de pessoas que lutam ao nosso lado na mesma guerra. E porque não, tecer críticas, fazer elogios e "cascar o pau" naquilo que achamos errado?
Bão, o blog taí. Obrigado por vir. A casa é sua. Ou melhor, a roça é sua.
VIVA A CULTURA POPULAR BRASILEIRA.