26.2.07

Do poeta popular Zé da Luz

Meus compadres e minhas comadres.

O poeta popular Zé da Luz teve seu trabalho conhecido pela linguagem matuta presente em seus cordéis.

Seu verdadeiro nome era Severino de Andrade Silva, nascido em Itabaiana, PB, em 29/03/1904 e falecido no Rio de Janeiro-RJ, em 12/02/1965.
Assunta só a preciosidade desses versos:

Ai! Se Sêsse!...

Se um dia nós se gostasse;
Se um dia nós se queresse;
Se nós dois se impariásse,
Se juntinho nós dois vivesse!
Se juntinho nós dois morasse
Se juntinho nós dois drumisse;
Se juntinho nós dois morresse!
Se pro céu nós dois assubisse?
Mas porém, se acontecesse
qui São Pêdo não abrisse
as portas do céu e fosse,
te dizê quarqué toulíce?
E se eu me arriminasse
e cum eu tu insistisse,
prá qui eu me arrezorvesse
e a minha faca puxasse,
e o buxo do céu furasse?...
Tarvez qui nós dois ficasse
tarvez qui nós dois caísse
e o céu furado arriasse
e as virge todas fugisse!!!

25.2.07

Um maestro em cena

“Kubrick e Chaplin não ganharam o Oscar. Eu estava em ótima companhia”, diz Ennio Morricone, enfim premiado

As vésperas de completar 80 anos, Ennio Morricone não tem rugas no rosto. Diz que é por sorrir pouco. Antes de dar início à entrevista, ele pede um café e reclama do resfriado provocado pelo frio de Nova York, de onde acabara de voltar. Avisa que sua fala é franca e que se deixa levar por turpilóquios: “Italo Calvino, em um ensaio, dizia que eles são ainda mais necessários quando as conversas são pacatas”.
Nascido em Roma, em 10 de novembro de 1928, Morricone será homenageado no mais badalado prêmio do cinema, no domingo 25. Depois de cinco indicações ao Oscar, sem jamais ganhar, Hollywood decidiu premiá-lo com o Oscar à carreira. O evento será festejado com o disco We All Love Ennio Morricone, que tem a participação de Bruce Springsteen, Eumir Deodato, Quincy Jones, Herbie Hancock, Dulce Pontes, Mettalica e Celine Dion. Na noite do Oscar, será ela – habitué do palco da Academia – a cantar em homenagem a Morricone a bela música de Era uma Vez na América (1984), que acaba de ganhar letra.
Autor das músicas de mais 400 filmes, Morricone é sinônimo de excelência em trilhas sonoras. Ele musicou dramas, tragédias, comédias e épicos como A Batalha de Argel (1966), de Gillo Pontecorvo, Sacco e Vanzetti (1971), de Giuliano Montaldo, A Gaiola das Loucas (1978), de Edouard Molinaro, Os Intocáveis (1987), de Brian De Palma, Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore, e Bugsy (1991), de Barry Levinson.
A despeito da diversidade temática, seu nome permaneceu indissoluvelmente ligado aos spaghetti westerns de Sergio Leone. Juntos, eles formaram uma das mais importantes duplas diretor-compositor da história do cinema. Basta lembrar de Por um Punhado de Dólares (1964), O Bom, o Mau e o Feio (1966) e Era uma Vez no Oeste (1968), entre tantos outros.
Os spaghetti western relançavam, nos anos 60, um gênero então considerado decadente. Com um estilo novo, que a crítica classificou como “minimalista”, os filmes dessa safra eram marcados por grandes espaços vazios, longos silêncios em que se ouviam a respiração do pistoleiro impassível, o tique-taque de um relógio e uma música extremamente original. A instrumentação nada ortodoxa, que usava gaitas, guitarras elétricas e assobios, foi muitas vezes apontada como o grande trunfo dos filmes de Leone.
De lá para cá, Morricone jamais parou. Em Nova York, há poucas semanas, regeu, na sede da ONU, As Vozes do Silêncio, uma cantata pela paz escrita logo após o 11 de Setembro “dedicada às vítimas silenciosas de tantas tragédias com menor visibilidade”. No Radio City Music Hall, superlotado, mostrou uma seleção da sua produção cinematográfica.
Apesar de tantos anos de trabalho com o cinema americano, Morricone não fala inglês. Convidado a viver em Hollywood, preferiu permanecer em Roma, num panorâmico apartamento de frente para o Capitólio, como se assim pudesse conservar o ponto de vista na vida e na arte. Ao longo da trajetória, recebeu três Golden Globe, dois Grammy, seis Bafta (o Oscar inglês), seis David de Donatello, o Leão de Ouro pela carreira em Veneza, e mais um punhado de prêmios. Faltava o Oscar.

CartaCapital: Desde a indicação por Malena (2000), o senhor disse que não esperava ganhar o Oscar. O Oscar pela carreira o surpreendeu?

Enio Morricone: Depois de A Missão (de Roland Joffé, 1986), Bugsy e Os Intocáveis, não esperava mais, desisti do Oscar. No ano de Malena, quando iam anunciar o prêmio, disse para minha mulher: ‘Espero que não seja eu’. Foi uma reação instintiva, mas depois refleti: considero mais importantes cinco indicações sem ganhar do que ganhar por acaso na onda de um filme que vence tudo e arrasta os prêmios, como O Último Imperador, que ganhou nove Oscar e levou o meu prêmio pelos Intocáveis (risos). A indicação é feita por 15 compositores membros da Academia, que exercem minha profissão. É um reconhecimento mais importante do que o de 5 mil sócios que, talvez, votem com indiferença. À época, li uma matéria sobre artistas incríveis que jamais ganharam: Chaplin, Kubrick, uma multidão cuja companhia me agradava. Isso não quer dizer que não me agrade receber o prêmio. O presidente da Academia me telefonou e disse buon giorno, quando aqui já era noite, e eu respondi buon giorno, ainda que estivesse indo dormir. Agradeci e fiquei feliz.

CC: Há quem diga que o imenso sucesso dos filmes de Sergio Leone seja devedor da música de Ennio Morricone.

EM: Acho que eu sou devedor de Leone, pois é o bom filme a puxar o sucesso. Foi ele quem deu tamanha importância à musica. O que é o som de um filme? No caso de western, o som do cavalo que galopa, do chicote que estala, de um soco, um tiro. Mas a música de onde vem? De uma fonte misteriosa pela qual o diretor e o compositor são responsáveis. A música no cinema é duplamente abstrata: é arte abstrata e é abstrata em relação ao filme. Ouvimos o resultado na cena sem ver a fonte misteriosa de onde isso emana. Costumo dizer que, para se tornar importante, a música precisa de EST: energia, spazio, tempo. Energia é a transmissão do som, fundamental, pois um som que não se ouve não existe. Espaço: uma música de 20 segundos não existe, deve ter ao menos três minutos. Tempo: a escolha do momento em que é colocada. Leone me deu todos esses elementos.

CC: A duração da música é tão importante?

EM: A duração é importante para que a música seja ouvida e sentida. Permite que o compositor se exprima e faça emergir o que está subentendido no filme. Nosso cérebro não pode aceitar mais de dois sinais ao mesmo tempo. No filme Um Homem, uma Mulher, o diretor Claude Lelouch pôs a música para tocar no rádio do carro, enquanto (Jean-Louis) Trintignant dirige pensativo. Se o som fosse perturbado por freadas, buzinas ou diálogos, a música não teria ficado.

CC: Um aspecto menos conhecido do grande público é que o senhor seja um compositor fértil de música para salas de concertos.

EM: Minha profissão é um pouco ambígua. A música que chamo de “absoluta” não depende de outras aplicações. No cinema, a música se põe a serviço do filme. Mas a música aplicada, ou de encomenda, não é necessariamente um gênero menor. Basta o compositor ser capaz de escrever uma música dotada de força, tensão expressiva e qualidades formais que podem lhe dar uma vida independente. À parte os quartetos de Beethoven e outras exceções, a música do passado, inclusive as missas de Bach, sempre foi encomendada. Haendel fez música para fogos de artifício. Haydn compôs a Sinfonia do Adeus quando queria sair de férias e o príncipe não permitia. Ele teve a grande idéia de fazer um solista após o outro se retirar do palco depois de tocar, até deixar o violino sozinho e ver se assim o príncipe entendia. A música sempre esteve a serviço da vida: festas, funerais, paradas militares.

CC: Quem são os grandes compositores de música para o cinema?

EM: É uma pergunta à qual, em geral, eu não respondo. Não por antipatia, mas porque raramente os compositores escrevem a música do filme. Escrevem brogliacci (esboços), como dizemos nós, e entregam para o arranjador orquestrar. É um péssimo hábito. Hoje, em vez de escrever a partitura, compositores e pseudocompositores se entregam a sintetizadores mirabolantes. Espera-se que a máquina emita sons fascinantes. É claro que a máquina funciona, mas ela também pode promover o diletantismo em detrimento do profissionalismo, que é o que leva adiante as grandes idéias. Com esses sintetizadores, basta o compositor apertar uns botões para ter o som de orquestra.

CC: Na sua filmografia, há pelo menos três e até 15 trilhas por ano, nos últimos 40 anos. Como lhe sobra tempo para escrever cantatas e sinfonias?

EM: Outrora, antes de compor para mim mesmo, precisava de tempo para me desintoxicar. Hoje, sinto a convergência entre as duas atividades: o cinema trouxe alguma coisa não só de fantasia, mas do ponto de vista técnico, que estabelece uma ponte com a música absoluta. Distingo uma música e outra, mas hoje já não sinto necessidade de nenhuma pausa. Posso acabar uma trilha hoje e começar um quarteto de arcos amanhã.

CC: Fazer música para o cinema é estar aberto às sugestões do diretor e ter, ao mesmo tempo, idéias musicais fortes. Há algum diretor com quem prefira trabalhar? Algum com quem gostaria de ter trabalhado?

EM: Trabalho bem com muitos diretores e não é justo dizer um nome só. Eu deveria ter feito Laranja Mecânica, porque Kubrick era apaixonado pela música de Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita (de Elio Petri, 1969) e queria que eu trabalhasse em cima daquele tema. Eu não queria me repetir, mas ele estava obcecado. Acertamos o dinheiro e a gravação em Roma, sem a presença dele. Num belo dia, o Kubrick telefonou para o Leone e soube que eu estava com ele na mixagem. Nunca mais me chamou e fiquei sem saber ao certo porquê. Mas lamentei não ter trabalhado com aquele grande diretor.

CC: Acontece de ter de plagiar a si mesmo?

EM: Eu não faço isso, mas aconteceu com Queimada (1969), de Gillo Pontecorvo. Eu tinha feito a música para I Cannibali (1970), de Liliana Cavani, que estava montando o filme no mesmo lugar onde montava Pontecorvo. Gillo ouviu a música, um tema para coro e orquestra, e ficou doido. Conseguiu a fita na ausência da Liliana e montou a música na cena em que José Dolores (Marlon Brando) voltava a cavalo e a multidão a pé, e me mostrou na tentativa de me convencer. O resultado era espantoso. Gillo insistiu ao ponto em que não pude resistir e fui obrigado a me imitar. A música era diferente, mas o espírito era o mesmo e Liliana Cavani percebeu. O Pontecorvo ouviu poucas e boas. A mim, ela não chamou nunca mais. Com razão. Ou melhor, só recentemente, em Ripley’s Game (2002).

CC: Nino Rota era compositor de música de concerto e cinema. O que pensa da parceria dele com Fellini?

EM: Rota era um incrível músico, mas não pôde desenvolver sua imensa musicalidade com Fellini. Eu jamais teria escrito música para Fellini. Por quê? O próprio Fellini confessava que tinha cultura musical escassa e era fixado nos temas: Io cerco la pupina, io cerco non la trovo... (risos), e na Marcha dos Gladiadores que toca nos circos. Rota não ligava a mínima. Eram muito amigos. Ele se punha no piano e saía improvisando. A certa altura, Fellini dizia: “É essa!” E Rota: “Qual?” (risos) Fellini passou a gravar tudo para poder dizer “é essa”. Da parceria com Fellini, só é possível levar em consideração o Rota de Casanova. Deixado livre, ele fez um excelente trabalho. Há também La Strada, mas estavam presentes sempre o circo e os temas populares.

CC: Qual é o seu método de trabalho: analisa bem o roteiro antes ou prefere começar a escrever com o filme já montado?

EM: Às vezes, faço a música um mês antes de o filme sair, outras vezes trabalho com o diretor desde o início. Faço-o ouvir no piano algo com base no argumento. O importante é começar a escrever com as idéias claras, mas pode ser com o argumento, resumo do argumento, roteiro, ou vendo as imagens diárias ou as cenas montadas.

CC: Como é trabalhar em Hollywood?

EM: Os diretores de um certo nível trabalham todos mais ou menos da mesma maneira. Discute-se bastante até se chegar a um acordo entre as idéias do diretor e do compositor. Às vezes, os diretores têm idéias estranhas e, antes, eu perdia a paciência quando diziam algo aparentemente antimusical. Com o tempo, aprendi a tentar encontrar uma saída que contemple a idéia do diretor sem trair as minhas.

CC: Como o senhor começou em Hollywood?

EM: Tive duas fases. Inicialmente, ganhava de 300 a 500 mil liras na Itália e 35 mil dólares em Hollywood! Mas, certo dia em Los Angeles, a secretária do (produtor) Dino de Laurentis leu para mim a lista de quanto ganhavam os compositores e eu percebi que ganhava tanto quanto um medíocre compositor americano, meio diletante. Como não me considerava nem medíocre nem diletante, deixei de fazer música para eles até que passassem a me pagar decentemente.

CC: Quanto é decentemente?

EM: Não digo porque é um trabalho que amo tanto que faria de graça. Mas é justo que eu seja pago no meu nível. Eles pagam e eu recebo feliz.

CC: Como recomeçou nos Estados Unidos?

EM: O Fernando Ghia, excelente produtor italiano que morreu recentemente, me chamou a Londres para ver A Missão. O filme me comoveu às lagrimas e eu disse que não poderia fazer a música. Tinha medo de piorá-lo. Eles insistiram e eu recomecei imediatamente com outros honorários estipulados pelo Fernando Ghia.

CC: Que tipo de pesquisa o senhor fez para esse trabalho?

EM: Os produtores haviam encomendado um trabalho muito sério sobre a música que os jesuítas levaram para a América Latina. Era o princípio da música instrumental do Renascimento, baseada nas regras para a música sacra decididas no Concilio de Trento (1542-1563). Na Idade Média, fazia-se música sacra com palavras profanas e canções profanas com palavras sacras. No filme, havia um padre que tocava oboé, os meninos que estudavam violino. Houve uma música que chamei de Ave Maria em Guarani. Para a gravação, convidamos gente de várias embaixadas asiáticas e misturamos os diletantes, que desafinavam, com os profissionais. Misturamos uma espécie de música étnica com palavras latinas, que expressavam a civilização musical levada para a América do Sul. O resultado me deu satisfação técnica e moral.

CC: Há alguma de suas músicas à qual o senhor é particularmente ligado?

EM: Nunca ouço minhas músicas. Quando ouço e às vezes gosto, depois sonho, me perturba. Gosto mais da música que acabo de fazer, La Sconosciuta, para Giuseppe Tornatore, e a próxima que farei.

CC: Qual será seu próximo projeto?

EM: O Último dos Coleoneses, um filme de Simona Izzo, para a televisão, com Nicola Zingaretti e Ricky Tognazzi, e um filme do Giuliano Montaldo sobre a vida do Dostoievski.

por Elisa Byington, de Roma

Carta Capital

24.2.07

Site transmite peça ''Os Sertões'' ao vivo neste sábado

As apresentações do espetáculo Os Sertões, do Teatro Oficina, serão transmitidas ao vivo pela internet, a partir deste sábado (24/02), pelo site oficial da companhia teatral.

Até o dia 25 de março, a página da trupe na Web disponibiliza, em todos os fins de semana, imagens em vídeo das cinco peças que constituem a montagem inspirada no livro homônimo de Euclides da Cunha.

As imagens e sons serão captados durante sessões normais dos espetáculos A Terra, O Homem (1 e 2) e A Luta (1 e 2), por intermédio de dez câmeras, e transmitidas apenas ao vivo pelo site. Não estão previstas exibições posteriores das peças.

A proposta do acesso democrático se estende também aos interessados a comparecer ao teatro. Durante a temporada de filmagens, os ingressos custarão R$ 1. O público (ao vivo e online) acompanhará a gravação do DVD do espetáculo.

26 horas
As imagens, segundo José Celso Martinez, vão compor ''o longa mais longo de todos os tempos''. Ao final da produção, será lançada uma caixa de DVDs com todo material produzido, prevista para conter ao menos 26 horas de espetáculos corridos, além de extras com os bastidores do projeto.

Cada peça terá um diretor geral: Tommy Pietra (A Terra), Fernando Coimbra (O Homem 1), Marcelo Drummond (O Homem 2), Elaine César (A Luta 1) e Erik Rocha (A Luta 2). O resultado deve chegar ao mercado em dezembro.

Confira a agenda das transmissões online de Os Sertões

A Terra
24/2, às 19 horas; e 25/2, às 18 horas. Duração: 3h30

O Homem 1
3 e 4/3 de março, às 19 horas. Duração: 4h30

O Homem 2
10 e 11/3 de março, às 19 horas. Duração: 5h30

A Luta 1
17 e 18/3, às 19 horas. Duração: 6h15

A Luta 2
24 e 25/3, às 19 horas. Duração: 6 horas

UOL

17.2.07

Brasil-folia

Desde ontem o Brasil está na folia. Folia significa pândega, bagunça, loucura. É isso que caracteriza o nonsense do verdadeiro carnaval, a ausência de propósitos. Não é a estrutura “las veguiana” das escolas de sambas, com uma cultura do faz-de-conta. Faz de conta que a ilusão é realidade, faz de conta que o enredo é uma mensagem de cunho social e faz de conta que todos são sambistas. Como, se a essência financeira das escolas de samba é fruto, quase sempre, da contravenção?

A folia, livre, descoordenada e democratizada é a resposta do povo à sisudez da vida, à violência flagelando famílias e transformando a todos em reféns medrosos diante do inesperado. Assim, em meio a goles de cachaça e de cerveja vamos todos entorpecer a nossa tristeza endógena e transmudá-la em alegria coletiva de brasileiros que não votaram em Sarney, votaram no Collor, não votaram em Itamar, mas votaram em FHC e bisaram Lula.

Na verdade, pouco se sabe sobre o povo brasileiro, tão vário quanto mal definido, mesmo que Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. tenham tentado explica-lo, sem grande êxito. Em pleno 2007, pouco se conhece de sentimentos, caráter, sonhos e dores díspares dos que habitam a Amazônia, povoam os pampas gaúchos, sertanejam pelo centro-oeste ou nas securas do nordeste. Somos tantos. O que temos em comum é riqueza mal distribuída e pobreza generalizada. O que nos une é a ignorância da grande maioria, esperando a redenção que sempre depende do céu ou dos outros, especialmente do governo.

Mas, falava do Brasil-Folia e não estava pensando nos espetáculos para turistas e televisão no Rio, São Paulo e Bahia. Folia não tem enredo, abre-alas e mestre-sala. Nada a ver com alegorias, marcação, harmonia e iluminação. Folia é terapia coletiva, é baticum no boteco da esquina, nos blocos e cordões de sujos, tudo aleatório e anárquico. O resto é fantasia comprada por turistas desengonçados, sem cadência ou tendência para o passo inconseqüente do samba, posando para câmeras, na esperança do registro que lhes dê glória, efêmera que seja.

João Soares Neto
Extraído do site: www.vermelho.org.br

16.2.07

Arqueologia do amor

O sítio arqueológico de ocupações pretéritas aproxima-se das angústias e anseios contemporâneos de ausências presentes.

Não é mais uma questão de pele ou de afinidades, os ossos entrelaçados são testemunhas perenes dos nobres sentimentos do gênero humano. No período neolítico, quando as palavras ainda se mostravam escassas e os gestos poliam as realidades, dois jovens foram enterrados juntos num abraço que nenhuma força da natureza poderia separar.

Por coincidência, ou providencial acaso, o local dista apenas quarenta quilômetros de Verona, cenário do amor de Romeu e Julieta, imortalizado por William Shakespeare. O sítio arqueológico de ocupações pretéritas aproxima-se das angústias e anseios contemporâneos de ausências presentes. A fantasia dos jovens amantes permeia nossos anseios e dá corpo aos sonhos da mocidade cheios de arrebatamento e paixão. Palpitações, desejos, descobertas... A vida no limiar da morte, ser o outro mesmo que num plano improvável...

Para os mortos, já não existem verbos a serem conjugados. Contudo, a ternura das circunstâncias e a intensidade da entrega são vestígios arqueológicos que podem ser encontrados em todos os que incorporaram as próprias narrativas e que, em muitas ocasiões, não valorizam os achados e os soterram em baldios esquecimentos.

Dois corpos enredados numa só alma. Dois jovens amantes, irmãos, amigos... As análises dos laboratórios poderão recompor muito da estrutura dos esqueletos, ligados sob as peles do tempo, e das ferramentas de pedra, pontas de flecha e a faca, artefatos característicos do período neolítico, mas a emoção que originou o abraço nunca poderá reconstituída e deverá permanecer para sempre como uma ação a ser abarcada pela humanidade.

Helena Sut
Extraído do site www.cartamaior.com.br

14.2.07


A cultura e o planejamento da cidade

No ambiente urbano, com qualidade de vida discutível e um estado de regressão cultural, o espetáculo é sempre o alvo das denominadas políticas culturais que desconhecem o processo do fazer cultural e as questões mais evidentes, como a diversidade, a conservação e a transformação das linguagens artísticas e suas leituras.

A produção cultural e o planejamento urbano que estamos a presenciar e consumir chamam a atenção para uma época de políticos, burocratas e empresários à frente dos destinos da cidade. Se o planejamento foi levado à condição de aspirina para resolver um mal incurável: “a desordem urbana”, a cultura foi transformada em divertimento descartável para uma população urbana que corre desesperada atrás de um ócio.

A revolução industrial criou uma obsessão de progresso, mas em relação ao mundo do pensamento, o homem pouco avançou, ao contrário, reduziu sua capacidade de reflexão, criando um tipo de sociedade que privilegia o consumo e despreza as idéias. Paradoxalmente, o aumento da informação resultou na diminuição do repertório.

A cidade moderna, administrada pela economia e por legislações que nos são impostas, é um supermercado com um estoque de produtos e tecnologias que precisa ser comercializado para gerar emprego, renda e desenvolvimento econômico. Não é mais o espaço da solidariedade, mas um campo de concentração de empregados e desempregados, de guetos, de proprietários isolados, com mínimas possibilidades de trocas de experiências entre indivíduos de grupos diferentes. É a cultura dos condomínios fechados, das praças privatizadas, do paraíso dos shoppings. Até a arte deixou de ser um “exercício de liberdade” como imaginava o crítico Mário Pedrosa e passou a ser julgada como um produto ou espetáculo do mercado cultural.

A prática de um conhecimento quando subordinada aos interesses que negam o princípio desse conhecimento e o bem comum, é também a negação da cidadania. A arquitetura, a arte, o desenho da cidade e dos objetos deixaram de ser dispositivos de acomodação e satisfação do homem com o meio ambiente onde vive; e passaram a ser o exercício burocrático de desenhar ou estetizar o território, de adaptar a cidade para a razão perversa de uma sociedade que nega os valores e a ética em nome do crescimento econômico e da concentração de renda que fazem o cotidiano da vida moderna.

Na produção da cidade, a atividade intelectual foi excluída e substituída por uma relação de trocas e favores. Nesse ambiente urbano, com qualidade de vida discutível e um estado de regressão cultural, a festa, ou melhor, o espetáculo é sempre o alvo das denominadas políticas culturais que desconhecem o processo do fazer cultural e as questões mais evidentes, como a diversidade, a conservação e a transformação das linguagens artísticas e suas leituras.

O que os administradores da cultura esquecem, algumas vezes, é que as artes têm suas próprias materialidades, não são campos de pouso para outras políticas, nem mesmo as ditas culturais que ignoram problemas acerca da tradição, do moderno e do contemporâneo. A origem, a história dessas linguagens e a lógica de suas revoluções. Enquanto artistas, arquitetos, intelectuais, produtores de bens artísticos, mesmo excluídos do processo de decisão, temos o compromisso de resgatar a reflexão sobre as práticas culturais e a imagem da cidade. Temos uma responsabilidade neste momento que é a de tomar uma decisão enquanto é possível para o futuro de nossas cidades antes que a economia o determine para nós. Uma cidade sem poesia, sem memória e sem história é um abismo de simulacros e referências artificiais.

Uma cidade tem sentido quando tem uma história, uma identidade. Não podemos imaginar o futuro sem descortinar a memória e contemplar o patrimônio nela guardado. A cultura na qual estamos mergulhados é responsável por essa cidade que estamos edificando, da especulação imobiliária, da disputa do metro quadrado, como se o espaço urbano fosse apenas uma mercadoria e não o lugar da convivência e da liberdade. Isto pode significar o fim da concepção de cidade que determinou sua origem.

A universidade, uma instituição por excelência da cidade, vem se afastando de seus princípios fundamentais para atender as demandas do mercado de trabalho em detrimento da especulação do pensamento. Sua função não era formar mão-de-obra especializada, mas estimular a reflexão, muitas vezes sem mercado de trabalho, sem a qual a vida cultural de uma cidade entra em declínio.

A cidade surgiu como o lugar do encontro com o outro, do diálogo. Essa cultura das comunidades restritas, do gozo sem desejo, do jogo de interesses privados, onde só os semelhantes interagem, fez com que ninguém se sentisse comprometido com a preservação do espaço físico, do meio ambiente, dos valores, da História, dos bens coletivos. A competição em lugar da cooperação reduziu o sujeito urbano à força de trabalho e consumidor de produtos, e inventou uma cidade que não fala mais de nossos afetos e paixões. Mas se o sonho ainda não acabou, temos imaginação e raciocínio, vamos alimentar a vontade de reinventar a cidade e suas instituições para recuperar o humano, a comunicação, a solidariedade e o encontro das diferenças.

Almandrade (Antônio Luiz M. Andrade): artista plástico, arquiteto, mestre em desenho urbano e poeta.

12.2.07

O mundo ferve – e o marxismo com isso?

O relatório sobre aquecimento global divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) esquentou o debate sobre o que fazer para evitar uma catástrofe previsível. Mas a discussão fica manca se não se buscam responsáveis para além de uma "atividade humana". Afinal, humano é George Bush que, representando os interesses do grande capital estadunidense, recusa-se a assinar o Protocolo de Kioto, que coíbe a emissão de gases poluentes; humana é a trabalhadora rural que cuida de sua plantação de subsistência; humanas são as cerca de 50 milhões de crianças que vivem em estado de pobreza, somente nos 24 países mais ricos do mundo (levantamento do Unicef – Fundo das Nações Unidas para a Infância).

Ao fundamentarem o materialismo histórico e dialético, Karl Marx e Friedrich Engels demonstraram que não existe, a não ser na cabeça de ideólogos idealistas, o homem abstrato, destituído de história e de existência concreta na sociedade e na natureza. O relatório da ONU indica que a devastação da natureza em dimensão que coloca em risco a vida humana no planeta ocorreu a partir da revolução industrial. Revolução que resultou no domínio de alcance planetário da classe burguesa e das relações capitalistas de produção. E Marx foi o mais arguto analista da formação do capitalismo, indicando o que trouxe de benefícios e que mazelas impôs à sociedade.

Mas os pensadores alemães não centraram suas análises nas questões ecológicas e, vivendo no século XIX, não testemunharam a escalada de destruição do meio ambiente realizado pari passu com o desenvolvimento da indústria e a expansão da exploração rural.
Engels se referiu ao homem como "a natureza quando toma consciência de si mesma" (Anti-Dhüring). Marx, nos Manuscritos de 1844, considerou que a natureza "é o corpo não-orgânico do homem". Os dois destacam que a atividade humana leva ao domínio das leis da natureza, para melhor atuar e colocá-la ao serviço da humanidade.

Engels foi virulento em suas críticas ao capitalismo ao analisar as condições sub-humanas nos bairros proletários de Londres na primeira metade dos anos 1800 – não responsabiliza "os homens", mas a burguesia pela degradação do ar e dos rios. Num de seus últimos escritos, "O papel do trabalho da transformação do macaco em homem", sentencia: "Os fatos nos lembram a todo instante que nós não reinamos sobre a natureza do mesmo modo que um colonizador reina sobre um povo estrangeiro, como alguém que está fora da natureza, mas que nós lhe pertencemos com nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro, que nós estamos em seu seio e que toda a nossa dominação sobre ela reside na vantagem que levamos sobre o conjunto das outras criaturas por conhecer suas leis e por podermos nos servir dela judiciosamente". É o uso judicioso que o capitalismo impede, com sua busca incessante da maior taxa de lucro possível, custe o que custar, devaste o que devastar. E, como anota nesse mesmo texto, para cada vitória humana sobre a natureza, "a natureza se vinga de nós."

Nos "Grundisse", Marx registra que a produção fundada sobre o capital cria "um sistema de exploração geral das propriedades da natureza e do homem", começando a "apropriação universal da natureza". Em O Capital, o autor constata que "a indústria e o comércio proporcionam à agricultura os meios para o esgotamento da terra". Diz que o desenvolvimento capitalista perturba "o metabolismo entre homem e terra", considera "cada progresso da agricultura" um "progresso da arte de saquear o solo" e acusa o capitalismo de "minar simultaneamente as fontes de toda a riqueza: a terra e o trabalhador". Ainda nO Capital, Marx escreve que "o desenvolvimento da civilização e da indústria em geral (...) se mostra sempre tão ativo na devastação das florestas que tudo aquilo que pôde ser empreendido para a conservação e produção é comparativamente completamente insignificante".

Mais de 100 anos após a publicação dessa obra, não é apenas a natureza que vem sendo inescrupulosamente degradada, mas, ao mesmo tempo, o número de miseráveis está aumentando: Aproximadamente a metade da população do mundo vive baixo da linha da pobreza, segundo um informe da Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgado em 2003. Quase 3 bilhões de pessoas vivem com menos de US$ 2 por dia. Dos 3 bilhões, cerca de 1 bilhão – o equivalente a um quarto da população dos países em desenvolvimento – vive com menos de um dólar diário. A OIT também informou que o desemprego oficial está em um dos níveis mais altos da história, com 180 milhões de desempregados, enquanto mais de 1 bilhão de pessoas estão subempregadas ou parcialmente empregadas.

Mas os fundadores do socialismo científico não ficavam somente lamentando a destruição da natureza. Convicto de que não basta interpretar o mundo, é preciso transformá-lo, Marx aponta o comunismo como a solução para "o antagonismo entre o homem e a natureza". Com a abolição da propriedade privada, será possível "a realização da unidade essencial do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo completo do homem e o humanismo completo da natureza". No volume III dO Capital, menciona a necessidade de "tratamento conscientemente racional da terra como eterna propriedade comunitária, e como condição inalienável de existência e de reprodução da cadeia das gerações humanas sucessivas". Considera as sociedades tomadas em conjunto "apenas ocupantes, usufrutuárias," da terra, que devem, "como bons paters famílias, deixá-la em melhor estado para as futuras gerações". Em outro trecho aponta que "a única liberdade possível é a regulação racional, pelo ser humano socializado, pelos produtores associados, de seu metabolismo com a natureza, que eles controlam juntos ao invés de serem dominados por ele como por uma potência cega".
O ser humano sobreviveu e assegurou seu desenvolvimento colocando a natureza a seu serviço. No século XIX não era possível avaliar plenamente as conseqüências da devastação da natureza mas vale, no caso a observação feita por Engels, em 1892, em relação ao seu livro sobre a classe trabalhadora inglesa, publicado em 1834: "O admirável não é que muitas destas profecias tenham falhado, mas que tantas tenham se mostrado corretas"...

Carlos Pompe – Jornalista e curioso do mundo
Matéria extraída do site www.vermelho.org.br


10.2.07

O TEU é nosso!

Período de utilização do palco do Teatro Experimental de Uberaba (TEU) para as sessões de plenário dos vereadores vai ser mais curto do que o previsto. O presidente da Câmara, Lourival dos Santos (PSB), que fez sua estréia anteontem no comando das reuniões, anunciou que o espaço será liberado dia 15, quinta-feira, já que as obras de adequação do plenário, na rua Manoel Borges, foram agilizadas e estão entrando na fase de acabamento. O motivo da pressa, que já era comentado nos bastidores, ganhou contornos "oficiais" ontem, quando o presidente do Conselho Municipal de Políticas Culturais de Uberaba, Aristides Bonfim, pediu para falar no plenário, em nome dos artistas da cidade."Não fomos consultados sobre o uso do TEU pela Câmara de Vereadores, e nos sentimos desrespeitados por isso", desabafou. O artista garantiu que a categoria não é contra o empréstimo do espaço, mas sim, contra a forma como ele aconteceu. "Para nós, artistas de Uberaba, o TEU é tão sagrado quanto o plenário da Câmara Municipal é sagrado para os senhores vereadores" - comparou. De acordo com Aristides Bonfim, a cidade tem cerca de 300 artistas, sendo que a maioria sobrevive da sua arte, e o TEU, segundo ele, é a casa que permite esta sobrevivência. A ocupação do teatro pela Câmara de Vereadores, ocorrida sem qualquer aviso prévio, de acordo com ele, tem sido um transtorno para os artistas da cidade, que ficaram sem o espaço.O palco do TEU, onde acontecem as apresentações, foi ocupado pelo mobiliário (mesas e cadeiras) do plenário da Câmara, impedindo as manifestações culturais.Lourival dos Santos explicou que o local foi oferecido pelo ex-presidente da Fundação Cultural, Além-Mar Paranhos (exonerado do cargo na semana passada), e que os vereadores não imaginavam que a ocupação temporária fosse provocar transtornos. O presidente do Conselho Municipal de Políticas Culturais, a exemplo do presidente da Câmara, evitou fazer críticas diretas ao ex-dirigente da Fundação Cultural (substituído pelo jornalista Luiz Gonzaga), mas não poupou cobranças para o setor. Tapa de pelica - As queixas sobre o uso do TEU abriram, por outro lado, espaço para Lourival dos Santos fazer seu "comercial". O vereador reafirmou que a gestão 2007/2008 da mesa diretora pretende priorizar a participação popular no programa TV Câmara, exibido pela TV Universitária/Cultura, canal 5, de segunda-feira a sexta-feira, das 9h30 às 11h30 e das 21h às 22h30. Lourival assegurou que no topo das prioridades está justamente a abertura de espaços para os artistas de Uberaba.

Giselda Campos
Jornal de Uberaba
PS: O título da materia colocado no blog não corresponde ao editado pelo jornal de onde foi extraída.

2.2.07

Associação Cultural Antenógenes Silva

Meus compadres e minhas comadres:

Foi realizada no dia 26 p.p., na Praça Santa Terezinha, nº 420, (Clínica Corpo e Mente)Assembléia Geral convocada para a fundação, eleição e posse da primeira diretoria da ACUAS(pronuncia-se Ácuas)Associação Cultural Antenógenes Silva.

Uberaba ganha então uma ong para atuar na área cultural desenvolvendo espetáculos públicos e projetos culturais além de manter e desenvolver os trabalhos artísticos da Orquestra de Uberaba e outros grupos que venham a ser constituídos.

O nome da Associação foi escolhido como forma de homenagear esse grande músico que foi Antenógenes Silva, um dos maiores músicos nascidos em nossa terra, compositor de inúmeras obras que integram o nosso cancioneiro popular e o elevam ao patamar dos grandes melodistas da música popular brasileira.

A nova entidade cultural cumpre agora a etapa de registros e a partir do mês de março estará em plena atividade, promovendo e servindo como fórum de debates em assuntos relativos à cultura, meio ambiente, ciência, arte/educação, entre outros.

A primeira Diretoria da ACUAS ficou assim constituída:

Presidente: Jeziel Pousa Corrêa de Paiva
Vice-Presidente: Antonio Silveira De Vito
1º Secretário: Maristela Jakimiu De Vito
2º Secretário: Carlos Marques Perez
1º Tesoureiro: Léo de Lima
2º Tesoureiro: Sandra Pinheiro

Vida longa à Associação Cultural Antenógenes Silva

Erlon Paschoal: Brecht, Artaud e a busca de um novo teatro

No ano anterior comemorou-se em todo o mundo os 110 anos de nascimento de Antonin Artaud e os 50 anos da morte de Bertolt Brecht. Dois expoentes da cultura ocidental e do teatro universal, que estão sendo lembrados por todos que cultivam a arte e prezam a evolução do espírito humano.

Estes dois artistas vivenciaram a mesma época em países limítrofes e - em vários momentos da história - antagônicos. Ambos criticaram mordazmente o teatro oficial existente em seus respectivos ambientes na primeira metade do século. Foram contemporâneos, embora sem nenhum contato. Artaud morreu em 1947, Brecht em 1956. Ambos viveram duas grandes guerras e presenciaram a degeneração do convívio humano em proporções até então inimagináveis, e reagiram a elas de maneira distinta, como são distintas também suas respectivas concepções de vida e de teatro.

Um vê nos grande conflitos humanos a atuação de forças cósmicas; o outro, de forças sociais; e expressam tais perspectivas em suas criações teatrais. Ambos, enfim, viveram intensamente a atividade teatral, embora Artaud tenha dirigido algumas poucas peças em toda sua vida, ao contrário de Brecht, que dedicou quase todo o seu tempo à prática do teatro, fosse encenando ou criando, fosse escrevendo ou desenvolvendo teorias. Como se vê, Brecht exercitou no palco as suas idéias, compartilhando-as com seus contemporâneos, sempre em busca da transformação do homem e de suas relações sociais. Artaud, por outro lado, praticou o teatro quase que unicamente em si mesmo, expressando-o em alguns poucos textos esparsos de maneira arrojada, decidida, escatológica e universal. Ambos lutaram contra a hegemonia ditatorial da palavra e postularam uma linguagem abertamente teatral, uma “fala” característica do palco.

Como toda linguagem está condicionada por aquilo que anseia exprimir, aquela desenvolvida por Brecht busca a precisão, a concisão e a eficácia comunicativa, explora o humor e enfatiza a beleza. Artaud exalta a entrega às forças naturais primitivas, o rompimento das amarras sociais e almeja atingir as dimensões mais profundas do espírito, provocando o encanto e o fascínio. Enquanto Brecht procura explicar e revelar a atividade do ator com conceitos objetivos, quase científicos, Artaud faz uso de termos abstratos e ambíguos, tais como Guerreiro, Duplo, Peste, Crueldade, colocando no palco não mais temas psicológicos ou sociais, mas míticos e cósmicos.

Sem dúvida, não vamos resumir a intensidade e a influência do fazer teatral de cada um deles, em meia dúzia de frases, pois sabemos que todo grande autor possui mananciais ainda inexplorados. Brecht era um homem prático, que pregava a lucidez e a transformação social, legando à humanidade alguns dos textos mais significativos da dramaturgia universal, ao lado de poemas, teorias, críticas, roteiros, análises, romances, contos e artigos sobre os mais variados temas. Artaud foi um vate, um visionário, que dialogava com as forças inconscientes e pretendia resgatar o poder primitivo e transformador do teatro. Passou parte de sua vida em hospícios (locais talvez mais sadios que a louca realidade, sobretudo de 1937 a 1946); conviveu alguns meses com os índios Tarahumaras no México, onde teve contato com os ritos do peyote e pôde vivenciar o esplendor da vida mergulhada no Absoluto e integrada às forças da Natureza.

Ambos, contudo, acreditaram que a função do teatro era “fazer pensar”, levar o público a vivenciar e a considerar novas possibilidades de existência, através de uma linguagem elaborada, viva e inovadora. Ao mesmo tempo que rejeitavam as formas teatrais então convencionais, eles almejavam revolucionar o convívio social, retomando tradições ocidentais instigadoras e sendo fortemente influenciados pelo teatro oriental. Artaud afirmou: “ligar o teatro à possibilidade de expressão pelas formas, e de tudo que houver em matéria de gestos, ruídos, cores, plasticidade etc., é devolvê-lo à sua primitiva destinação, é recolocá-lo em seu aspecto religioso e metafísico, é reconciliá-lo com o Universo.”

A contribuição mais notória de Artaud para a evolução da arte teatral é, de qualquer modo, a reivindicação e o vislumbre de uma linguagem puramente teatral, não mais dominada pela palavra, mas pelo gesto, pela plasticidade e pelos signos de intenso apelo inconsciente. Aspectos exclusivamente psicológicos perdem a importância e “não se trata de saber se a linguagem física do teatro é capaz de chegar às mesmas resoluções psicológicas que a linguagem das palavras, se consegue expressar sentimentos e paixões tão bem quanto as palavras, mas de saber se não existem no domínio do pensamento e da inteligência atitudes que as palavras são incapazes de apreender e que os gestos e tudo aquilo que participa da linguagem no espaço conseguem captar com mais precisão do que elas”.

Suas descrições do teatro ideal são virulentas, poéticas e pulsivamente emotivas, por vezes bombásticas e concludentes. A sua premência de se expressar e a sua rejeição do abuso predominante e excessivo das palavras, leva-o à impossibilidade de compartilhar suas idéias com seus contemporâneos, e ao vazio: “Todo verdadeiro sentimento é na verdade intraduzível. Expressá-lo é traí-lo. Mas traduzi-lo é dissimulá-lo. A expressão verdadeira oculta aquilo que manifesta”. Desse modo, em sua não definição, a linguagem concreta, espacial e física do teatro, “faz surgir a idéia de uma certa poesia no espaço que se confunde com a bruxaria”. E conclui: “o autor que usa exclusivamente palavras escritas não tem mais lugar e deve abrir espaço aos especialistas dessa bruxaria objetiva e animada”. Além disso, “é preciso acabar com essa idéia de obras-primas reservadas a uma auto-intitulada elite, e que a massa não entende”.

Neste sentido, apesar das diferenças, tanto Brecht quanto Artaud, atacam a falsa noção de sublime e da idolatria das “obras-primas imobilizadas”, características do teatro e do conformismo pequeno-burguês.

Em sua busca de um teatro que despertasse os nervos e o coração dos homens, Artaud chega à formulação de uma concepção teatral que insufle miticamente as massas, levando-as a acreditar nos sonhos apresentados no palco - mas como sonhos de fato e não como “decalque da realidade” - estimulando no público a “liberdade mágica do sonho” marcada pelo terror e pela crueldade.

Artaud é categórico: “farei aquilo com que sonhei, ou não farei nada”.

Recorrendo às imagens presentes nas pinturas de Grünewald, Brueguel, Goya e Bosch, Artaud vislumbra um espetáculo ideal, composto por verdadeiras tentações, capaz de extrair as forças primitivas presentes nos mitos e no inconsciente das massas, denominando-o Teatro da Crueldade. Nele, tal como nos ritos e na magia, o público deve ser levado ao delírio e ao êxtase, vivenciando a totalidade física e espiritual do Ser.

A crueldade intrínseca ao verdadeiro teatro é assim justificada por ele: “Sem um elemento de crueldade na base de todo espetáculo, o teatro não é possível. No estado de degenerescência em que nos encontramos, é através da pele que faremos a metafísica penetrar nos espíritos”. Ele pressupõe, portanto, o rigor implacável, a determinação absoluta e um apetite cego pela vida. Embora o Teatro da Crueldade não passe de um manifesto - fruto de uma época, aliás, repleta de manifestos (surrealista, dadaísta, modernista, comunista, antropofágico etc.) - a sua impetuosidade e o seu tom arrebatador influenciaram figuras expressivas do teatro mundial neste século: de Jean-Louis Barrault a Julian Beck, de Grotowski a José Celso Martinez Correa, todos empenhados na criação de um teatro vivo, pobre, despojado, essencial e ritualístico.

Naturalmente, um manifesto rico em imagens ardorosas e metáforas exaltadas prestou-se também a muitos equívocos, à medida em que tais confusões, analogias e abstrações simbólicas transcendentais deram margem a interpretações contraditórias e, por vezes, excludentes. De qualquer modo, os seus ingredientes básicos são a ruptura, a criação de uma linguagem gestual comunicativa e a primazia da encenação em detrimento do uso estático da palavra.

De resto, algo evidentemente comum a Brecht e a Artaud é a visão de que o teatro deveria abandonar a sua função meramente decorativa e culinária para tornar-se essencial, popular, humano e transformador. Ambos sonharam conscientemente o mundo através da arte teatral; um através da atividade teórico-prática incessante; o outro com visões alucinatórias profundas e arquetípicas.

Não sei o que Artaud pensaria ao ver em nossos dias o fascínio exercido pela televisão e pela imagem em geral nas massas; ao ver o desdobramento da estética nazista na publicidade e na produção dos grandes eventos modernos; a invenção intermitente e acelerada de ídolos, imposta pela indústria do entretenimento, e de imagens que se caracterizam psicologicamente como os mitos do homem moderno; ao ver o mundo de aparências que nos rodeia e nos seduz, que esvazia o sentido de todos os gestos e banaliza as grandes emoções humanas... Grotowski, por exemplo, preferiu isolar-se numa cidade do interior da Itália, a abandonar a produção de espetáculos utilizando o teatro a partir de então apenas enquanto meio para a educação do homem. Talvez porque no decorrer da História, as pretensões mirabolantes, mágicas e hipnóticas de Artaud tenham se esgotado em si mesmas, pois a sensibilidade do espectador moderno já está devidamente calejada pela desordem e pelas aberrações desumanas reinantes em nossa sociedade e pela pirotecnia sensacionalista dos meios de comunicação.

Para Brecht, por sua vez, “a palavra do poeta não tem de ser mais sagrada do que verdadeira, pois o teatro não está a serviço do poeta, mas da sociedade”.

Artaud é quase desconhecido no Brasil, enquanto Brecht foi um dos autores mais lidos, montados e discutidos em toda a América Latina, sobretudo nas décadas de sessenta, setenta e oitenta. A Editora Paz e Terra publicou recentemente em português todos os seus textos teatrais em doze volumes. A principal obra de Artaud “O Teatro e Seu Duplo” também pode ser encontrada em qualquer livraria. Que esta data sirva então como pretexto para retomarmos ou conhecermos as idéias sempre instigantes e vivas destes dois símbolos do teatro moderno.
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Erlon Paschoal, Diretor de teatro, dramaturgo, tradutor e gestor cultural, nascido em São Paulo. Estudou Letras Português-Alemão na USP e já traduziu para o português diversos autores. Atualmente trabalha no Minc.

Extraído do site: www.vermelho.org.br