25.2.07

Um maestro em cena

“Kubrick e Chaplin não ganharam o Oscar. Eu estava em ótima companhia”, diz Ennio Morricone, enfim premiado

As vésperas de completar 80 anos, Ennio Morricone não tem rugas no rosto. Diz que é por sorrir pouco. Antes de dar início à entrevista, ele pede um café e reclama do resfriado provocado pelo frio de Nova York, de onde acabara de voltar. Avisa que sua fala é franca e que se deixa levar por turpilóquios: “Italo Calvino, em um ensaio, dizia que eles são ainda mais necessários quando as conversas são pacatas”.
Nascido em Roma, em 10 de novembro de 1928, Morricone será homenageado no mais badalado prêmio do cinema, no domingo 25. Depois de cinco indicações ao Oscar, sem jamais ganhar, Hollywood decidiu premiá-lo com o Oscar à carreira. O evento será festejado com o disco We All Love Ennio Morricone, que tem a participação de Bruce Springsteen, Eumir Deodato, Quincy Jones, Herbie Hancock, Dulce Pontes, Mettalica e Celine Dion. Na noite do Oscar, será ela – habitué do palco da Academia – a cantar em homenagem a Morricone a bela música de Era uma Vez na América (1984), que acaba de ganhar letra.
Autor das músicas de mais 400 filmes, Morricone é sinônimo de excelência em trilhas sonoras. Ele musicou dramas, tragédias, comédias e épicos como A Batalha de Argel (1966), de Gillo Pontecorvo, Sacco e Vanzetti (1971), de Giuliano Montaldo, A Gaiola das Loucas (1978), de Edouard Molinaro, Os Intocáveis (1987), de Brian De Palma, Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore, e Bugsy (1991), de Barry Levinson.
A despeito da diversidade temática, seu nome permaneceu indissoluvelmente ligado aos spaghetti westerns de Sergio Leone. Juntos, eles formaram uma das mais importantes duplas diretor-compositor da história do cinema. Basta lembrar de Por um Punhado de Dólares (1964), O Bom, o Mau e o Feio (1966) e Era uma Vez no Oeste (1968), entre tantos outros.
Os spaghetti western relançavam, nos anos 60, um gênero então considerado decadente. Com um estilo novo, que a crítica classificou como “minimalista”, os filmes dessa safra eram marcados por grandes espaços vazios, longos silêncios em que se ouviam a respiração do pistoleiro impassível, o tique-taque de um relógio e uma música extremamente original. A instrumentação nada ortodoxa, que usava gaitas, guitarras elétricas e assobios, foi muitas vezes apontada como o grande trunfo dos filmes de Leone.
De lá para cá, Morricone jamais parou. Em Nova York, há poucas semanas, regeu, na sede da ONU, As Vozes do Silêncio, uma cantata pela paz escrita logo após o 11 de Setembro “dedicada às vítimas silenciosas de tantas tragédias com menor visibilidade”. No Radio City Music Hall, superlotado, mostrou uma seleção da sua produção cinematográfica.
Apesar de tantos anos de trabalho com o cinema americano, Morricone não fala inglês. Convidado a viver em Hollywood, preferiu permanecer em Roma, num panorâmico apartamento de frente para o Capitólio, como se assim pudesse conservar o ponto de vista na vida e na arte. Ao longo da trajetória, recebeu três Golden Globe, dois Grammy, seis Bafta (o Oscar inglês), seis David de Donatello, o Leão de Ouro pela carreira em Veneza, e mais um punhado de prêmios. Faltava o Oscar.

CartaCapital: Desde a indicação por Malena (2000), o senhor disse que não esperava ganhar o Oscar. O Oscar pela carreira o surpreendeu?

Enio Morricone: Depois de A Missão (de Roland Joffé, 1986), Bugsy e Os Intocáveis, não esperava mais, desisti do Oscar. No ano de Malena, quando iam anunciar o prêmio, disse para minha mulher: ‘Espero que não seja eu’. Foi uma reação instintiva, mas depois refleti: considero mais importantes cinco indicações sem ganhar do que ganhar por acaso na onda de um filme que vence tudo e arrasta os prêmios, como O Último Imperador, que ganhou nove Oscar e levou o meu prêmio pelos Intocáveis (risos). A indicação é feita por 15 compositores membros da Academia, que exercem minha profissão. É um reconhecimento mais importante do que o de 5 mil sócios que, talvez, votem com indiferença. À época, li uma matéria sobre artistas incríveis que jamais ganharam: Chaplin, Kubrick, uma multidão cuja companhia me agradava. Isso não quer dizer que não me agrade receber o prêmio. O presidente da Academia me telefonou e disse buon giorno, quando aqui já era noite, e eu respondi buon giorno, ainda que estivesse indo dormir. Agradeci e fiquei feliz.

CC: Há quem diga que o imenso sucesso dos filmes de Sergio Leone seja devedor da música de Ennio Morricone.

EM: Acho que eu sou devedor de Leone, pois é o bom filme a puxar o sucesso. Foi ele quem deu tamanha importância à musica. O que é o som de um filme? No caso de western, o som do cavalo que galopa, do chicote que estala, de um soco, um tiro. Mas a música de onde vem? De uma fonte misteriosa pela qual o diretor e o compositor são responsáveis. A música no cinema é duplamente abstrata: é arte abstrata e é abstrata em relação ao filme. Ouvimos o resultado na cena sem ver a fonte misteriosa de onde isso emana. Costumo dizer que, para se tornar importante, a música precisa de EST: energia, spazio, tempo. Energia é a transmissão do som, fundamental, pois um som que não se ouve não existe. Espaço: uma música de 20 segundos não existe, deve ter ao menos três minutos. Tempo: a escolha do momento em que é colocada. Leone me deu todos esses elementos.

CC: A duração da música é tão importante?

EM: A duração é importante para que a música seja ouvida e sentida. Permite que o compositor se exprima e faça emergir o que está subentendido no filme. Nosso cérebro não pode aceitar mais de dois sinais ao mesmo tempo. No filme Um Homem, uma Mulher, o diretor Claude Lelouch pôs a música para tocar no rádio do carro, enquanto (Jean-Louis) Trintignant dirige pensativo. Se o som fosse perturbado por freadas, buzinas ou diálogos, a música não teria ficado.

CC: Um aspecto menos conhecido do grande público é que o senhor seja um compositor fértil de música para salas de concertos.

EM: Minha profissão é um pouco ambígua. A música que chamo de “absoluta” não depende de outras aplicações. No cinema, a música se põe a serviço do filme. Mas a música aplicada, ou de encomenda, não é necessariamente um gênero menor. Basta o compositor ser capaz de escrever uma música dotada de força, tensão expressiva e qualidades formais que podem lhe dar uma vida independente. À parte os quartetos de Beethoven e outras exceções, a música do passado, inclusive as missas de Bach, sempre foi encomendada. Haendel fez música para fogos de artifício. Haydn compôs a Sinfonia do Adeus quando queria sair de férias e o príncipe não permitia. Ele teve a grande idéia de fazer um solista após o outro se retirar do palco depois de tocar, até deixar o violino sozinho e ver se assim o príncipe entendia. A música sempre esteve a serviço da vida: festas, funerais, paradas militares.

CC: Quem são os grandes compositores de música para o cinema?

EM: É uma pergunta à qual, em geral, eu não respondo. Não por antipatia, mas porque raramente os compositores escrevem a música do filme. Escrevem brogliacci (esboços), como dizemos nós, e entregam para o arranjador orquestrar. É um péssimo hábito. Hoje, em vez de escrever a partitura, compositores e pseudocompositores se entregam a sintetizadores mirabolantes. Espera-se que a máquina emita sons fascinantes. É claro que a máquina funciona, mas ela também pode promover o diletantismo em detrimento do profissionalismo, que é o que leva adiante as grandes idéias. Com esses sintetizadores, basta o compositor apertar uns botões para ter o som de orquestra.

CC: Na sua filmografia, há pelo menos três e até 15 trilhas por ano, nos últimos 40 anos. Como lhe sobra tempo para escrever cantatas e sinfonias?

EM: Outrora, antes de compor para mim mesmo, precisava de tempo para me desintoxicar. Hoje, sinto a convergência entre as duas atividades: o cinema trouxe alguma coisa não só de fantasia, mas do ponto de vista técnico, que estabelece uma ponte com a música absoluta. Distingo uma música e outra, mas hoje já não sinto necessidade de nenhuma pausa. Posso acabar uma trilha hoje e começar um quarteto de arcos amanhã.

CC: Fazer música para o cinema é estar aberto às sugestões do diretor e ter, ao mesmo tempo, idéias musicais fortes. Há algum diretor com quem prefira trabalhar? Algum com quem gostaria de ter trabalhado?

EM: Trabalho bem com muitos diretores e não é justo dizer um nome só. Eu deveria ter feito Laranja Mecânica, porque Kubrick era apaixonado pela música de Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita (de Elio Petri, 1969) e queria que eu trabalhasse em cima daquele tema. Eu não queria me repetir, mas ele estava obcecado. Acertamos o dinheiro e a gravação em Roma, sem a presença dele. Num belo dia, o Kubrick telefonou para o Leone e soube que eu estava com ele na mixagem. Nunca mais me chamou e fiquei sem saber ao certo porquê. Mas lamentei não ter trabalhado com aquele grande diretor.

CC: Acontece de ter de plagiar a si mesmo?

EM: Eu não faço isso, mas aconteceu com Queimada (1969), de Gillo Pontecorvo. Eu tinha feito a música para I Cannibali (1970), de Liliana Cavani, que estava montando o filme no mesmo lugar onde montava Pontecorvo. Gillo ouviu a música, um tema para coro e orquestra, e ficou doido. Conseguiu a fita na ausência da Liliana e montou a música na cena em que José Dolores (Marlon Brando) voltava a cavalo e a multidão a pé, e me mostrou na tentativa de me convencer. O resultado era espantoso. Gillo insistiu ao ponto em que não pude resistir e fui obrigado a me imitar. A música era diferente, mas o espírito era o mesmo e Liliana Cavani percebeu. O Pontecorvo ouviu poucas e boas. A mim, ela não chamou nunca mais. Com razão. Ou melhor, só recentemente, em Ripley’s Game (2002).

CC: Nino Rota era compositor de música de concerto e cinema. O que pensa da parceria dele com Fellini?

EM: Rota era um incrível músico, mas não pôde desenvolver sua imensa musicalidade com Fellini. Eu jamais teria escrito música para Fellini. Por quê? O próprio Fellini confessava que tinha cultura musical escassa e era fixado nos temas: Io cerco la pupina, io cerco non la trovo... (risos), e na Marcha dos Gladiadores que toca nos circos. Rota não ligava a mínima. Eram muito amigos. Ele se punha no piano e saía improvisando. A certa altura, Fellini dizia: “É essa!” E Rota: “Qual?” (risos) Fellini passou a gravar tudo para poder dizer “é essa”. Da parceria com Fellini, só é possível levar em consideração o Rota de Casanova. Deixado livre, ele fez um excelente trabalho. Há também La Strada, mas estavam presentes sempre o circo e os temas populares.

CC: Qual é o seu método de trabalho: analisa bem o roteiro antes ou prefere começar a escrever com o filme já montado?

EM: Às vezes, faço a música um mês antes de o filme sair, outras vezes trabalho com o diretor desde o início. Faço-o ouvir no piano algo com base no argumento. O importante é começar a escrever com as idéias claras, mas pode ser com o argumento, resumo do argumento, roteiro, ou vendo as imagens diárias ou as cenas montadas.

CC: Como é trabalhar em Hollywood?

EM: Os diretores de um certo nível trabalham todos mais ou menos da mesma maneira. Discute-se bastante até se chegar a um acordo entre as idéias do diretor e do compositor. Às vezes, os diretores têm idéias estranhas e, antes, eu perdia a paciência quando diziam algo aparentemente antimusical. Com o tempo, aprendi a tentar encontrar uma saída que contemple a idéia do diretor sem trair as minhas.

CC: Como o senhor começou em Hollywood?

EM: Tive duas fases. Inicialmente, ganhava de 300 a 500 mil liras na Itália e 35 mil dólares em Hollywood! Mas, certo dia em Los Angeles, a secretária do (produtor) Dino de Laurentis leu para mim a lista de quanto ganhavam os compositores e eu percebi que ganhava tanto quanto um medíocre compositor americano, meio diletante. Como não me considerava nem medíocre nem diletante, deixei de fazer música para eles até que passassem a me pagar decentemente.

CC: Quanto é decentemente?

EM: Não digo porque é um trabalho que amo tanto que faria de graça. Mas é justo que eu seja pago no meu nível. Eles pagam e eu recebo feliz.

CC: Como recomeçou nos Estados Unidos?

EM: O Fernando Ghia, excelente produtor italiano que morreu recentemente, me chamou a Londres para ver A Missão. O filme me comoveu às lagrimas e eu disse que não poderia fazer a música. Tinha medo de piorá-lo. Eles insistiram e eu recomecei imediatamente com outros honorários estipulados pelo Fernando Ghia.

CC: Que tipo de pesquisa o senhor fez para esse trabalho?

EM: Os produtores haviam encomendado um trabalho muito sério sobre a música que os jesuítas levaram para a América Latina. Era o princípio da música instrumental do Renascimento, baseada nas regras para a música sacra decididas no Concilio de Trento (1542-1563). Na Idade Média, fazia-se música sacra com palavras profanas e canções profanas com palavras sacras. No filme, havia um padre que tocava oboé, os meninos que estudavam violino. Houve uma música que chamei de Ave Maria em Guarani. Para a gravação, convidamos gente de várias embaixadas asiáticas e misturamos os diletantes, que desafinavam, com os profissionais. Misturamos uma espécie de música étnica com palavras latinas, que expressavam a civilização musical levada para a América do Sul. O resultado me deu satisfação técnica e moral.

CC: Há alguma de suas músicas à qual o senhor é particularmente ligado?

EM: Nunca ouço minhas músicas. Quando ouço e às vezes gosto, depois sonho, me perturba. Gosto mais da música que acabo de fazer, La Sconosciuta, para Giuseppe Tornatore, e a próxima que farei.

CC: Qual será seu próximo projeto?

EM: O Último dos Coleoneses, um filme de Simona Izzo, para a televisão, com Nicola Zingaretti e Ricky Tognazzi, e um filme do Giuliano Montaldo sobre a vida do Dostoievski.

por Elisa Byington, de Roma

Carta Capital