13.12.06

ERUDITO X POPULAR

TRADIÇÕES PROCURAM ESCAPAR DO RÓTULO ELITISTA DO FOLCLORE

Para o II Fórum Cultural Mundial e o VII Mercado Cultural, realizados em Salvador no início de dezembro, o popular é erudito, pois está recheado de sabedoria. Por isso, a Fundação Gregório de Matos organizou dentro da programação dos eventos os Encontros de Culturas Eruditas, reunindo recitais, os tambores do Candomblé, flautas, piano, e até dança de rua.

Carlos Gustavo Yoda – Carta Maior

SALVADOR - No estudo das culturas, a música erudita é sinônimo de clássico. Os dicionários musicais costumam definir a música erudita em três pontos: a música "séria" em oposição à música popular, música folclórica, música ligeira ou de jazz; qualquer música em que a atração estética resida principalmente na clareza, no equilíbrio, na austeridade e na objetividade da estrutura formal, em lugar da subjetividade, do emocionalismo exagerado ou da falta de limites de linguagem musical; e a terceira é dizer que seria a música feita durante o período de 1750 a 1830, em especial a de Haydn, Mozart e Beethoven.

Definições e regras musicistas à parte, partindo da análise etimológica da palavra erudito, compreenderemos que a expressão corresponde àquele que recebeu instrução, o conhecedor, o sábio. Assim sendo, onde se encaixam os tantos mestres da cultura que muitas vezes sem saber ler ou escrever constituem a formação tão vasta e desconhecida das tradições orais brasileiras?

Para o II Fórum Cultural Mundial e o VII Mercado Cultural, realizados em Salvador no início de dezembro, o popular é erudito, pois está recheado de sabedoria. Por isso, a Fundação Gregório de Matos organizou dentro da programação dos eventos os Encontros de Culturas Eruditas, reunindo recitais, os tambores do Candomblé, flautas, piano, e até dança de rua.

Segundo o presidente da Fundação, Paulo Costa Lima, o objetivo é procurar um conceito de erudição que subverta a visão elitista sobre o termo. “Precisamos preservar e difundir todos os tipos de saberes. Assim, buscamos o reconhecimento dos mestres das culturas populares. Há uma diferença entre conhecimento e sabedoria. Mas a sabedoria também é uma erudição”, explica.

O músico e pesquisador paraibano radicado em Alagoas, Naldinho, considera errôneo o termo “culturas populares”. Ele prefere trabalhar com o conceito de “tradição oral”, justamente para incluir essas expressões no universo erudito. Naldinho, que lançou no Mercado Cultural o disco Raízes, experimentando os batuques nordestinos, diz que já passou da hora dessas tradições encontrarem o devido reconhecimento artístico.

Boas Notícias
Desse princípio, nasce também o tema do Fórum de Salvador. As Boas Notícias, que atracaram na capital da Bahia, revelaram um novo momento para a cultura e para o debate de suas políticas públicas. Um reflexo reconhecido em todos os espaços do Fórum como resultado do processo natural da produção artística aliada ao pensamento de Gil no MinC, revelando e incentivando as culturas populares, ao invés de incentivar a mal chamada e elitizada cultura erudita.

Nas ruas e espaços do evento em Salvador, isso ficou claro. O Terreiro da Casa Branca, o mais antigo templo afro-descendente das Américas, foi um dos lugares que abrigou toda essa diversidade. Os alabês do Ilê Fun Fun fizeram todas as saudações do Candomblé, no país onde, antes do historiador Jaime Sodré, o que não era cristão era visto como seita.

Sodré lançou durante o Mercado uma pesquisa sobre a influência da religião afro-brasileira na obra escultórica de Mestre Didi. Ele entende que o meio acadêmico tem uma visão distorcida das produções populares, ainda mais a negra. “A universidade pensa essa arte como folclore. Precisamos reverter essa visão simplista e elitizada”.

Canibalismo
Naldinho, em entrevista à Carta Maior, lembrou de um causo ocorrido em Maceió. Mestre Verdilinho foi convidado a participar de um debate sobre a preservação das tradições orais e um antropólogo que estuda no exterior comporia a mesa com ele. O vôo do antropólogo atrasou e Mestre Verdilinho teve de esperar mais de uma hora até o acadêmico chegar: “O antropólogo foi o primeiro a falar e tratou da cultura com tanta propriedade que quando chegou a vez do velho mestre, Verdilinho recusou-se a falar ou a tocar seu pandeiro. Apenas deu seu pandeiro ao ‘doutor’ e pediu para ele fazer um coco alagoano. E o ‘doutor’ ficou em silêncio vendo o mestre sair da sala sob os aplausos”.

Naldinho narra a história para exemplificar dois graves problemas de exploração que sofrem as tradições: o canibalismo e a espetacularização. “Essas coisas acontecem tanto do meio acadêmico, que simplesmente explora as expressões e os saberes sem devolvê-los às comunidades, quanto de músicos que não regionais que transformam tudo em um espetáculo para ser comercializado, através da mídia, com uma visão preconceituosa”, conclui o músico.