6.9.07

Por que Pavarotti, o maior, não deixa herdeiros à ópera

A morte de Luciano Pavarotti, na manhã desta quinta-feira (6), deixa o mundo privado do maior dos tenores - "um vulcão que cantava fogo", nas palavras de Bono Vox. Da elite dos grandes teatros aos simples aficionados, o mundo da ópera chora a perda enquanto lembra especialmente a grande difusão que o cantor lírico italiano deu a essa forma artística.

A voz potente e a disposição em se juntar a nomes do universo pop, como Sting e Bono, fizeram de Pavarotti um nome familiar no mundo inteiro. Morto aos 71 anos, após lutar contra um câncer pancreático, é considerado o "maior tenor do mundo", desde a morte do "grande Enrico Caruso", em 1921.

"Sempre admirei sua voz divina, seu timbre inconfundível e sua extensão vocal completa", declarou Plácido Domingo, que fez com Pavarotti e José Carreras a poular série de concertos Os Três Tenores. "Eu adorava seu belo senso de humor."

A Ópera Real do Covent Garden de Londres - onde Pavarotti saltou para a fama com sua primeira apresentação solo, em 1963 - também lamentou a morte do tenor: "Ele tinha a capacidade única de tocar as pessoas com a qualidade emotiva e brilhante da sua voz. Era um homem com o toque comum e com o dom mais extraordinário".

A perda foi ainda mais sentida em Modena, a cidade onde Pavarotti nasceu em 1935, viveu e morreu. Ali, ele era lembrado não só como um grande tenor mas também como o jovem amante do futebol que foi no passado. "Estivemos juntos desde a infância. Ele jogava de goleiro", recordou Giorgio Maletti, de 72 anos.

Venusta Nascetti, 71, costumava servir café a Pavarotti num bar local quando ambos eram adolescentes. Hoje se lembrou dele como alguém "cheio de alegria, um espírito feliz". Diante da casa de Pavarotti, aonde foi para prestar sua última homenagem, a frágil idosa, com a emoção escondida atrás de óculos escuros, resumiu aos jornalistas: "Ele sempre nos amou como o amamos".

Voz e carisma

Mas por que, afinal, Pavarotti é considerado o maior de sua geração? Como esse italiano soube impor, nos mais prestigiados palcos - do Teatro Scala de Milão ao Metropolitan Opera de Nova York - sua silhueta rabelaisiana, sua espessa barba castanho-escura e seu sorriso largo?

Luciano Pavarotti foi diferente de qualquer outro tenor, dizem os críticos, porque reunia uma voz lírica graciosa com carisma, em doses tão grandiosas quanto era grande seu corpo. Ele também conhecia suas próprias limitações, e, por isso, restringiu seu repertório para não aceitar papéis que não fossem adequados para ele, evitando cantar em línguas demais.

Tendo optado definitivamente pelo canto em 1961, Pavarotti combinava talento e audácia. Veja-se o que o tenor fez com La Bohème de Puccini, sua ópera preferida. Ao interpretá-la no teatro de ópera de Reggio Emilia, Pavarotti levou La Bohème a um sucesso fulgurante, ultrapassando muito rápido as fronteiras da Itália e da Europa.

Seu repertório era sofisticado. Donizetti (La Fille du Régiment), Bellini (La Somnanbule), Rossini (Guillaume Tell), Verdi (Rigoletto) faziam parte há mais de três décadas das turnês mundiais do tenor. Além disso, as maiores divas do mundo - como Montserrat Caballé, Kiri Te Kanawa e Joan Sutherland - acompanharam-no em suas mais belas apresentações.

Capaz de cantar do clássico e suas variações, passando pelo canto napolitando, Pavarotti não hesitava - mesmo correndo o risco de ser alvo da crítica - em formar os duetos mais diversos, como os que fez com Joe Cocker ou Mariah Carey, para defender a causa humanitária.

O futuro

Pavarotti não deixa herdeiros artísticos. A ascensão da "popera" (fusão do pop e da ópera), a obsessão pelo estrelato instantâneo e o limitado grupo de talentos entre os tenores da atualidade significam que não veremos outro como ele por muito tempo.

Na opinião do importante crítico de ópera Norman Lebrecht, a falta de investimentos em músicos e gravações clássicas atualmente revela que encontrar um sucessor para Pavarotti será mais difícil que nunca. "Não valorizamos a ópera da mesma maneira (que no passado), não fomentamos o talento da mesma maneira, nem criamos uma trajetória profissional mais fácil", disse o crítico.

Lebrecht afirmou que é quase impensável, nos dias de hoje, que um garoto italiano que crescesse em Módena, a cidade natal de Pavarotti, optasse por uma carreira na ópera em lugar do futebol - outro dos grandes amores do cantor. "O sucesso no futebol e no cinema é muito maior, mais recompensador e mais rápido, comparado ao trabalho árduo necessário para criar um grande cantor de ópera."

Hugh Canning, crítico de ópera do jornal britânico Sunday Times, afirmou que os tenores de talento atuais, em sua maioria, não passaram tanto tempo quanto Pavarotti alimentando suas vozes. Afora isso, sofrem pressões para se tornarem vendáveis já no início de suas carreiras. "Hoje em dia se identifica uma voz muito boa - e quatro ou cinco anos mais tarde ela já soa esgotada."

Canning citou os exemplos do tenor mexicano Rolando Villazón e do argentino José Cura, que vêm cantando no nível mais alto com menos frequência que seria de se esperar para artistas de sua idade. "Acho que é daí que vem a pressão: tentar forçar astros, em lugar de formar e nutri-los de maneira natural."

"E agora", acrescenta o crítico, "o mundo quer cantores jovens, para promover suas belas imagens em belas revistas. Pavarotti foi um astro improvável, porque já em meados dos anos 1970 ele era um homem bastante gordo. Se fosse hoje, talvez não tivesse tido uma carreira como a que teve". Segundo Canning, evitar o aprendizado prolongado exigido na ópera é uma tentação crescente para os cantores atuais, quando os reality shows na TV podem criar celebridades da noite para o dia.

"Para tornar-se um cantor clássico de alta qualidade, não basta vencer um concurso. Pessoas como Pavarotti e Plácido Domingo são prova disso O que realmente os tornou grande foi todo o trabalho anterior que fizeram antes de apresentar-se nos palcos internacionais e gravar os discos que recordaremos para sempre".

Especialistas também argumentam que, fora do pequeno círculo dos genuínos amantes do gênero, a maioria das pessoas associa a ópera a cantores como Andrea Bocelli e a banda Il Divo, que fundem música popular e clássica para tentar chegar ao público de massas. A "próxima geração" de tenores é liderada por Villazón e o peruano Juan Diego Flórez.

O francês Roberto Alagna tem muitos admiradores, embora sua decisão de abandonar o palco do La Scala no ano passado depois de ser vaiado tenha levantado dúvidas quanto a seu temperamento, como também acontece com o argentino Marcelo Alvarez e o mexicano Ramón Vargas.

Flórez, como Pavarotti em sua época áurea, canta os dós agudos de La Fille Du Regiment, de Donizetti, com facilidade. Mas poucos diriam que ele já se equipara ao mestre que acaba de falecer.