13.11.06

OSPRA!!!


O MUNDO SUBMERSO

Certa feita eu tomava um chopp, sentado a uma mesa, no Templo da Cidadania, em Ribeirão Preto e um senhor sentou-se junto a mim para uma prosa. Conversa vai conversa vem eu acabei abordando uma fala que dizia sobre a Ponte do Funil.
Para quem não sabe, essa ponte era apoiada em rochas e unia o município de Lavras ao de Perdões, no Sul de Minas, na região do Alto Rio Grande, onde o rio afunilava e descia barulhento no meio das pedras.
Era ali para onde a piracema levava todos os peixes.
Quando esse senhor soube da minha história com aquele lugar, seus olhos encheram-se de luz e com muita alegria falou-me do quanto era feliz nos seus passeios domingueiros na Ponte do Funil.
Mas depois ele ficou muito triste quando minha prosa foi contando o que aconteceu alí e que colocou tudo embaixo d’água, até a rocinha que meu irmão, Paulinho Martins, cuidou e deu trato por quase duas décadas. Mesmo morando em Campinas, pertinho de São Paulo, Paulinho dava um jeitinho de estar ali de costumeiro cumprindo esse seu ofício.
Plantou muita árvore, madeira de lei. fez bem-feitorias, inclusive na casa, fez paiol, plantava um feijãozinho, um milho verde, criava umas galinhas, sem falar numa hortinha, bem surtida que cultivava no fundo do quintal.
Paulinho é muito caprichoso e o sítio era muito bem cuidado, inda mais com a colaboração e o toque de Ana Rosa.
Lá, quando o sol se recolhia, a noite chegava, trazendo a cantoria dos bichos no mato em volta. E a gente, embaixo da luz do lampião, em companhia do velho fogão de lenha e de uma cachacinha misturávamos a cantoria dos bichos à música de Zé Coco do Riachão, Pena Branca e Xavantinho, Wilson Aragão, Elomar, Paulinho Pedra Azul, Vital Farias..., construindo assim aquela cantoria que era de todo o universo. A roça ficava no município de Perdões-MG, na margem direita do Rio Grande. E o nome do lugar, Sítio do Bié.
Hoje não existe mais. Que tristeza! A companhia de eletricidade construiu uma usina e a represa cobriu tudo. Afogou nossa alegria. Mudou a feição do lugar. Quantas criaturinhas de Deus não pereceram afogadas quando a barragem se fechou e o rio foi impedido de fazer seu curso e começou a inchar...?
Muitas pessoas presenciaram tudo e perceberam o silêncio que reinou quando a inundação cobriu as pedras do rio e revelou a agonia do lugar perante a fatalidade das águas que subiam engolindo estradas, casas, ranchos e sítios, separando o que a ponte unira por quase um século.
Nunca mais cruzaríamos a Ponte do Funil; nunca mais aquele peixinho frito e aquela prosa gostosa no bar de seo Vicente, com Célia e com Dute, e com Camilo no rancho “Nenhum de Nós”.
Há dois quilômetros dali, descendo o rio pela estradinha de chão batido que há muito tempo atrás suportava a linha do trem, ficava a “rocinha”.
Na metade do caminho o bar de Carlinhos Timburé, perto da roça o bar do Nelson, na porteira, o pé de aroeira e chegando na casa o pé de cidra que deu tantos frutos para dona Lilia fazer tantos doces deliciosos.
Há meio século que falavam da barragem que haveria de vir. Alguns achavam que não viria. Outros que era questão de tempo. Esse passou. E enquanto o tempo passava a gente dali passava o tempo na pesca. Subsistência.
O rio dá. O rio tira. O rio é tudo. O rio é o mundo.
O rio é a alegria de quem chega e a tristeza de quem não volta. Rio de lágrimas! Rio das mortes! Rio da vida!!!
Rio Grande, eternamente, represado dentro de nós. Rio generoso. Até jaú, um despotismo de peixe de couro, seo Domingos Pescador, um nativo, já havia pescado ali. Setenta e cinco quilos!
Seo Nelson Veloso também pegou um e levou o jaú de bicicleta para todo mundo ver e não dizer depois que era estória de pescador. E aliás, deve ser isso que vocês estão pensando, né? Mas não é não! Jaú é isso mesmo. Eu até pensei que fosse filhote...!
A flora e a fauna preservadas exuberavam-se mostrando uma infinidade de espécies: tiziu, tucano, tico-tico, sabiá, gavião, tatu, jaú, jacarandá. vovô-do-brejo, garça, dourado, piau, mogno, pau-brasil...
No quintal da roça, manga ubá, tão doce que eu bebia água depois de chupá-la. Banana era a “São Tomé”, só vendo para crer.
Foi nessa roça que Izabel conquistou distâncias dando seus primeiros passos.
Não tinha luz elétrica, se quisesse ouvir rádio tinha que ser rádio de pilha. Luz era só a do lampião. A gente se gabava muito de não ter luz alí. Alguns moradores ribeirinhos já haviam estendido a rede elétrica para o uso lá seus. Só a gente relutava. Éramos contra essa tal de rede elétrica, parecendo até que a gente estava adivinhando que mais tarde, por causa dessa tal eletricidade perderíamos o nosso cantinho bom do mundo.
Que progresso é esse que cobra tão alto a sua realização...!?!
A gente acordava com a passarinhada e dormia com o barulho do rio ao longe, lá embaixo, batendo nas pedras do caminho de suas águas.
O rio levou alguns de nós e a represa afogou um pedaço de quem ficou.
E naquela mesa de bar, esse senhor que não me disse o seu nome, não pode conter suas lágrimas. Chorou tanto que parecia o Rio Grande escorrendo dos olhos dele e falou, já saudoso, que “aquele lugar só irá existir agora na memória de nossas retinas”.
Enxugou suas lágrimas e foi-se embora, em silêncio, olhando o chão.
Somos o que restou daquele mundo submerso.
- Ospra!!!

Extraído do livro (a ser publicado) "Dedinho de Prosa" de Jeziel Pousa Corrêa de Paiva