15.11.06

O BELGA QUE ADOTOU RIBEIRÃO


Ele vai fazer trinta anos de Ribeirão Preto. Já tem mais tempo de Brasil do que em sua terra natal, a distante e gelada Bélgica. Padre Francisco Vannerom, ou simplesmente padre Chicão, adotou Ribeirão Preto no coração e na alma. Rejeita, terminantemente, a idéia de partir. Diz, com convicção, que veio para ficar.
Para viver ao lado dos pobres, lutando suas lutas, festejando suas alegrias, chorando suas dores.
Franciscus Hendrikus Dora Rita Vannerom nasceu em Bruxelas, a 16 de agosto de 1948, filho do belga Josephus e da holandesa Elisabeth Maria. O pai foi artesão na juventude, depois atuou no serviço de alfândega e por fim fez carreira militar. Prisioneiro dos alemães, passou parte da 2ª Guerra confinado em uma fazenda, sendo alimentado com a mesma comida dos porcos – lavagem.
Com o fim da guerra, os aliados ganham o direito de estacionar tropas na Alemanha, e lá se vai a família com os filhos Francisco e Ria. Dos três aos dez anos, Francisco vive em Siegen, perto de Colônia – lá perde a mãe, vítima de câncer, quando tinha nove anos.
Um ano depois, o pai volta a se casar, com a viúva de um primo. Padre Chico não gosta da palavra madrasta, prefere segunda mãe – Georgette tem hoje 86 anos e mora perto de Bruxelas.
O pai, às voltas com problemas pulmonares, decorrentes do confinamento na guerra, consegue transferência para Bruxelas. Lá Francisco estuda até concluir o ensino médio.

PROFISSÃO
Entre os 16, 17 anos, o sonho pessoal era ser jornalista. Já o pai tentava convencê-lo a cursar engenharia. A segunda mãe, uma católica devota, gostaria de oferecer o filho à Igreja.
No movimento de escoteiros, Francisco conhece um seminarista que estava prestes a iniciar uma missão – trabalhar com os pigmeus, povo do Congo, ex-colônia belga na África. Desperta, então, para uma questão: “por que não eu?”
O primeiro seminário que conhece, onde o sistema de formação se baseava no isolamento do mundo externo, não o atrai. Mas trava então contato com outros seminaristas, de um instituto que formava padres seculares europeus para a América Latina, continente que sofria com o reduzido número de sacerdotes. São padres seculares missionários – no latim, fidei donum (doados pela fé).
Vai então para a cidade universitária de Louvaine, onde estuda oito anos (teologia, filosofia e história).
A 5 de maio de 1973 é ordenado padre, na Igreja de Meise, cidadezinha de 8.500 habitantes a 11 km de Bruxelas – onde ainda hoje mora sua mãe. O primeiro posto é na Paróquia de Strombeek-Bever, cidade de 14.000 moradores a seis quilômetros da capital da Bélgica. Após dois anos, toma uma decisão sem volta – quer ser um missionário na América Latina. Recebe todo o apoio da mãe Georgette. “A alegria foi maior que a dor da separação”, recorda.

ESCOLHAS
- Quis ser um missionário, acho que um pouco foi pelo espírito aventureiro natural da juventude. A escolha da América Latina também tem explicação – o continente passava por um momento de transformação social, havia tido a revolução cubana, o idealismo de Che Guevara, clérigos mártires como o colombiano Camilo Torres. Na América Latina, quis o Brasil, já conhecia padres que estavam aqui e passavam férias de 3 em 3 anos na Europa e sabia da fama dos brasileiros, de festivos, alegres, comunicativos. E Ribeirão Preto porque aqui já estavam três padres belgas – Carlos, Paulo e Estevão, conta.

O CHOQUE
Foram 21 dias num navio cargueiro. Em 1° de abril de 1977 aportou no Rio de Janeiro, desembarcou dois dias depois em Santos e em 4 de abril chegou a Ribeirão Preto, vindo de São Paulo em uma perua Kombi.
- A primeira coisa que pensei ao chegar aqui foi – que calor! A segunda – será que vou ter de enfrentar feijão duas vezes por dia? (Na Bélgica, comia sopa de feijão de vez em quando, e só no inverno). Terceira coisa que eu pensei – que povo barulhento! O povo ficava nas ruas até à noite, eu nunca tinha visto um boteco aberto para a rua, lá na Bélgica eles eram fechados. Até na Igreja, antes de fazer o sinal da cruz, as pessoas conversavam! Na Bélgica, faz-se o mais completo silêncio, compara.

SANTA TEREZINHA
Padre Chico foi trabalhar na Paróquia Santa Terezinha e desde então está sempre ao lado de quem precisa – que ele chama de “irmãos e irmãs socialmente excluídos”.
Atuou na Capela Nossa Senhora do Rosário, no Morro do Cipó; na capela de Santa Rita das Palmeiras, então zona rural.
- Lá tive minha primeira decepção como europeu. Ninguém, do poder público e da igreja, quis nos ajudar a reformar a capelinha, que estava quase desmoronando e apresentava perigo de vida para as crianças. Então apanhei um martelo, fizemos um mutirão e demolimos a capela, que tinha grande valor histórico.
Atuou na Igreja de Santa Rita de Cássia, no Jardim Independência. Tem muita saudade da Igreja Deus é Amor, na Vila Carvalho, então maior foco de violência da cidade. Lá, teve entreveros com a polícia, quando acusava sem provas ou prendia sem mandados. Com recursos vindos da Europa, acabou com uma favela, erguendo 52 casas em regime de mutirão, ao longo de três anos.
Depois, no Parque Industrial Tanquinho, atuou na capela Jesus Semeador. No início dos anos 80, surge o Quintino I e o Parque Industrial Avelino Alves Palma. Logo depois, o Quintino II, o Simioni e o Avelino Alves Palma, todos dentro da área da Paróquia de Santa Terezinha.
Junto com um padre recém-ordenado, ajuda a organizar sete CEB’s - Comunidades Eclesiais de Base - hoje todas são igrejas, e formam juntas a Paróquia Jesus de Belém.

PÁROCO
Em 1988, padre Paulo retorna para a Bélgica e Chico assume como pároco. São tempos de novos desafios. Dom Arnaldo Ribeiro assume como arcebispo e incentiva a ação diocesana de padre Chico, que coordena todas as pastorais sociais. Atua no Cedhep - Centro de Direitos Humanos e Educação Popular. Coordena as Campanhas da Fraternidade, promovendo caminhadas de jovens da Catedral até o Teatro de Arena, no Morro de São Bento – com dom Arnaldo indo a pé, no meio da multidão. De uma das campanhas, contra o desemprego, em 1999, nasce a ong Crescer-Crédito Solidário, que opera com microempréstimos. No Jubileu de Juventude, em 2000, conseguiu reunir 5.000 jovens católicos em Batatais.

TERRA
Atualmente, além de vigário na Paróquia de Santa Terezinha, padre Chico é assessor da Comissão Pastoral da Terra. Atua nos assentamentos Sepé-Tiaraju, em Serrana, e Mário Lago/fazenda da Barra, em Ribeirão Preto. E há 17 anos dirige a Ong Sonho Real, um núcleo assistencial e promocional localizado no Tanquinho e que atende 55 crianças de três a seis anos, de famílias carentes.
Aos 58 anos, padre Chico se diz realizado.
- Já tenho mais tempo de Brasil do que de Bélgica. Foram 7 anos na Alemanha, 21 na Bélgica e quase 30 de Brasil. Encontrei aqui em Ribeirão Preto o espaço para realizar meu objetivo de vida – me colocar a serviço dos irmãos e irmãs socialmente excluídos.
Voltar para a Bélgica, só a passeio, em visitas familiares, de três em três anos – chegou da última em agosto.
- E minha mãe já fez onze viagens ao Brasil, para temporadas de até quatro meses. Mas lá me sinto como um peixe fora d’água. A igreja não é mais a mesma de minha juventude e a sociedade é tão altamente tecnológica e competitiva que me sinto burro. E além do mais, não tem mais boteco, explica padre Chico que, como um legítimo belga, é um admirador de uma boa cerveja.

Escrito por NICOLA TORNATORE
Foto: MATHEUS URENHA
Estraído do Jornal A Cidade