12.6.07

"Lei de Incentivo é sistema perdulário e injusto"

Meus compadres e comadres. Abaixo transcrevo entrevista de Yacoff Sarkovas ao Portal Carta Maior onde fala sobre leis de incentivo à cultura

Ele diz que "Lei de incentivo é sistema perdulário e injusto", e acusa o Ministério da Cultura de ter organizado fóruns pelo Brasil para discutir apenas mudanças cosméticas na lei, pois não quis enfrentar lobbies midiáticos.

Por Edson Wander

A incapacidade e até mesmo a perversidade do sistema de leis de incentivo baseadas em renúncia fiscal é uma noção que cresce de maneira inversamente proporcional à capacidade dos agentes públicos de mudá-lo. Além de perversas, as leis de incentivo são perdulárias, injustas e deseducam o empresariamento no trato do apoio cultural. Esse diagnóstico das leis de incentivo cultural no Brasil é de Yacoff Sarkovas, especialista e consultor de empresas na área de imagem corporativa e projetos culturais, sociais, ambientais e esportivos. Crítico mordaz da legislação que trata cultura como objeto de renúncia e até lucro fiscal subreptício, Sarkovas é o nome por trás da reengenharia dos programas culturais de empresas como Petrobras e Natura. Engenheiro eletrônico que passou a trabalhar no meio cultural, Sarkovas falou à Carta Maior sobre o quadro atual da legislação de fomento à cultura no Brasil e revelou, entre outras coisas, que o Senado discute um projeto que pretende revalidar a legislação de incentivos culturais via renúncia fiscal, que caducou ano passado. Leia os principais trechos da entrevista:

CARTA MAIOR - O que há de errado com as leis de incentivo à cultura no Brasil?

YACOFF SARKOVAS - É melhor começar perguntando o que há de certo, porque só há uma coisa certa nas leis de incentivo que é a transferência de dinheiro público para a cultura. Isso é positivo porque a cultura é uma questão de interesse público e, portanto, precisa de recursos públicos e só, pronto, acabou: a partir daí está tudo errado. É um sistema perdulário e injusto. É perdulário porque cria uma cadeia desnecessária de intermediação. Ao invés de o dinheiro sair em linha direta do caixa público para a ação cultural, cria-se uma cadeia de intermediação porque, para a busca desse recurso em meio a milhares de empresas, exige-se uma série de captadores, gente especializada em formulação de projetos e corretagem, o que dá margem a processos de corrupção. É perdulário também porque, no uso do dinheiro público, as empresas aplicam para fins que nada têm de interesse público. E ele é injusto porque ele não estabelece uma relação entre dinheiro público e interesse público. Isso faz com que, por exemplo, o filme a ser financiado seja o A e não o B. Os critérios passam a não ser justos e, então, chega-se a uma situação mais do que perdulária e injusta. Chega a ser absurda, surreal, como no caso da Lei do Audiovisual. Essa lei é um dos maiores escândalos culturais produzidos nesse país.

CM - Por quê?

YS - Você sabia que, quando você entra no cinema e vê aquela marca na abertura dos filmes, você está pagando para aquela empresa usar aquela marca naquele filme? O desconto via lei, nestes casos, chega a 132%, ou seja, aquela marca que abre o filme pegou R$ 1 milhão de reais do dinheiro público - porque ela não pegou um centavo do bolso dela - e deu para aquele filme acontecer. Em troca, pediu uma série de benefícios, inclusive aquele benefício de imagem. Além de ela deduzir do imposto o R$ 1 milhão que ela "deu", ela deduz também R$ 320 mil porque lança como despesa, aquilo se abate sobre o lucro e, na incidência, vira lucro. O poder público, o Estado brasileiro, paga para que empresas privadas decidiram onde se vai colocar o dinheiro público em forma de incentivo cultural, é assim que tem que ser vista a Lei do Audiovisual. A população brasileira não sabe disso, o cidadão brasileiro não sabe disso e precisaria saber.

CM - Então o modelo ideal é o financiamento direto?

YS Totalmente, não há nenhuma dúvida nisso. É assim que acontece no mundo inteiro e assim que acontece no Brasil em outras áreas, como científica, acadêmica, por exemplo, a de pesquisa. Como é que se concorre a recursos públicos na área de Biologia e Física por exemplo? Entra-se nos órgãos e institutos públicos afins que vão medir a competência do candidato por mérito técnico e mérito de política pública. Então, são critérios que fazem parte de uma estratégia pública de pesquisa, a cultura também deveria ter isso. Qual é a estratégia pública para fomentar a dança instrumental no Brasil? Qual é a estratégia pública que temos para gerar processos de inclusão cultural ou de democratização de acesso à cultura. Existe uma série de questões na área cultural que só o poder público pode dar conta.

CM - Mas não há experiências eficazes de incentivo cultural via fisco em outros países?

YS Há claro, mas não tem nada a ver com o que a gente chama de incentivo fiscal no Brasil. Lá fora é assim, como nos Estados Unidos, por exemplo, o cidadão mora em Nova York e vai muito ao Metropolitan porque acha o espaço um patrimônio da cidade e resolve ajudar o Metropolitan. Então ele dá 100 dólares por ano para o Metropolitan e desconta no seu Imposto de Renda. Mas, veja bem, a idéia é ele descontar 100 dólares do seu incentivo cultural, é deixar de pagar por essa doação e não receber por essa doação, como é facultado aqui como possibilita a Lei do Audiovisual de permitir as empresas até a lucrar 32% sobre o incentivo dado.

CM - Se é tão evidente os malefícios da lei por que não se consegue mudá-la?

YS Mudar a lei não é mexer em dois, três artigos dela, mas mudar o sistema de financiamento público à cultura. É fazer com que se substitua o sistema de dedução fiscal por um sistema de fundo de financiamento público e, a médio prazo, desaparecer com as leis de renúncia fiscal. Mas falta interesse e é importante que se diga que o governo Lula, com o Ministério do Gilberto Gil, endossa esse sistema de renúncia fiscal como sistema válido como modelo de financiamento público. O Ministério da Cultura organizou uma série de fóruns pelo Brasil para discutir mudanças cosméticas na lei.

CM - O argumento do Minc é que há entraves políticos para a mudança...

YS Por entraves políticos leia-se peitar pequenos lobbies, isso é que são entraves políticos. São lobbies poderosos apenas para gerar impacto midiático. Na verdade, a coluna do ministério neste aspecto foi quebrada logo no início do governo por um golpe midiático feito por alguns cineastas que revidaram um edital redigido de uma forma incompetente por uma estatal, colocando a necessidade de contrapartidas sociais para futuros projetos que viessem a ser contempladas por ela. Na verdade, foi um golpe midiático porque, por trás daquilo, não havia nenhuma crítica consistente. Enfim, é bom que se diga que, com Gil ou sem Gil, o staff técnico do ministério tem o diagnóstico completo disso sobre o que eu estou falando, lá todos sabem disso melhor do que eu e você. Outra: o Gil levou para o Ministério gente que tem uma visão crítica de todo esse processo que foram para lá dispostos a mudar isso, mas caíram na vala comum.

CM - Como o senhor avalia a participação privada nas ações de patrocínio cultural no Brasil?

YS Patrocínio é uma questão de comunicação empresarial, esquece lei de incentivo, cultura etc., é apenas uma forma de uma marca se comunicar. E, hoje, o próprio mercado está levando as empresas a se comunicarem de uma forma associativa: ela associa sua imagem a conteúdos que tenham valor para os seus públicos. Isso pode acontecer no campo cultural, esportivo, social, ambiental etc. Essa estratégia é adotada no mundo todo e no Brasil e desenvolve-se a cada ano. Atualmente, 19% dos orçamentos de comunicação das grandes empresas brasileiras são investidos nessa estratégia, e isso vai continuar crescendo nos próximos anos. Mas, com a criação das leis de incentivo, surgiu um dinheiro que não é deste orçamento, então as empresas usam dessas benesses, claro, pois está previsto em lei. Chegamos, com isso, a uma outra perversão da lei de incentivo cultural via dedução fiscal, que é a de deseducar o empresariado. É como se você dissesse para ele que não precisa usar o dinheiro dele para vender a sua imagem. E isso, infelizmente, criou uma dependência crescente desse processo. Hoje, do total de investimentos das empresas na cultura, 67% vem do uso das leis de incentivo fiscal. Ou seja, são 67% de recursos que usam leis de incentivo contra 33% que não usam. Outro dado: 80% das empresas brasileiras que fazem patrocínios culturais usam os benefícios da lei.