16.5.07

Choro pelo Vale

O músico fluminense, Carlos Henrique, resgata em dois discos e ampla pesquisa pelo Vale do Paraíba a contribuição negra para o desenvolvimento do chorinho. Em entrevista à Carta Maior sobre o projeto, o músico critica a política de Estado no Brasil de só financiar a música de concerto devota da cultura européia.

O choro é o gênero musical surgido no Brasil, na virada do século 19 para o 20, da mescla dos bailes da nobreza com a capacidade criativa do músico brasileiro, misturado por natureza desde sempre. Música de ressaltado valor melódico e harmônico, o chorinho passou à história com uma mal avaliada contribuição negra. O bandolinista e compositor fluminense Carlos Henrique Machado Freitas quer recontar essa história recobrando o valor da ritmia negra na construção do choro no Brasil.

Fez isso em ampla pesquisa pelo Vale do Paraíba que resultou em dois discos e um libreto acondicionado numa bem-bolada caixinha de lata batizada de Vale dos Tambores. Projeto realizado via Lei Rouanet com patrocínio da Eletrobras, a caixa ganhou há pouco sua segunda edição. O conjunto forma um conjunto interessante ao estudo do choro como fenômeno musical e social no Brasil.

Não é mera homenagem ao gênero, é também uma crítica à desvalorização que ainda cerca o gênero, diz Freitas, músico nascido e radicado em Volta Redonda (RJ). Contemporâneo de chorões de respeito como Raphael Rabello e o conjunto Galo Preto, Freitas afastou-se da música na década de 90. "Com essa pesquisa, eu quis mostrar que houve um 'aclareamento' do choro no Brasil, assim como fizeram com a própria história política e social do país. O choro começou com as bandas de música formada por escravos regidos por um maestro branco, europeu", comentou em entrevista à Carta Maior.

Para Freitas, a dissimulação do ritmo no choro ao longo de sua evolução não foi natural, como passou a se acreditar e até ser afirmado por muitos estudiosos. "Não foi, o negro das bandas de música foi intimado a tocar instrumentos de sopro e acabou desenvolvendo neles o seu ritmo ancestral", afirma Freitas citando o bombardino e a tuba como instrumentos das antigas retretas que faziam as vezes do ritmo, marcando a cozinha como se fosse um tambor.

Na capa do projeto, Freitas estampa uma foto da Banda de Escravos do Vale do Paraíba, formada em 1870. Há outras bandas centenárias citadas na pesquisa, a maioria exibindo uma formação de negros escravos das fazendas de café e a regência de maestros brancos. Essa tradição colonizadora na música, para Freitas, continua até hoje e toma de assalto o próprio Estado brasileiro. "É incrível como até hoje gastamos dinheiro público para manter corpos musicais voltados para a cultura européia. Até quando?", questiona mirando as orquestras mantidas com dinheiro público no Brasil.

Freitas questiona o fato de o Brasil ter uma diversidade musical popular tão rica, admirada inclusive pela elite européia e, no entanto, ainda se dedicar a financiar como política pública a cultura do colonizador. A crítica tem alvo certeiro nas orquestras brasileiras, a maioria se não toadas, mantidas com dinheiro público. Polêmico, mas não menos verdadeiro. "Cerca de 60% da verba da Cultura no Rio de Janeiro, por exemplo, vai para o Teatro Municipal", lembra o músico.

Segundo Freitas, além de mostrar subrepticiamente sua destreza musical nas bandas, mesmo num instrumento estranho à sua formação, os negros continuavam exercitando sua cultura de tamobores quando não estavam em ação nos eventos "oficiais". Pula-se 100 anos no relato e Freitas diz que esse mesmo "aclareamento" do ritmo no choro pôde ser observado com a chegada da bossa nova. "O contraponto típico do violão de sete cordas sumiu do choro, como sumiu o próprio gênero no Rio de Janeiro dos anos 50. Juscelino Kubitischeck era um seresteiro mineiro, mas foi vendido como o 'presidente bossa nova', lembra o músico.

No libreto de 54 páginas, Freitas apresenta o estudo que fez da larga faixa de cidades que se estabeleceram pela mocultura do café ao longo do Rio Paraíba em três estados brasileiros (RJ, MG e SP). É neste ambiente que ele situa, numa leitura "marioandradina", o caráter antropofágico do chorinho. "A trilha da Semana de 22 foi o choro burilado por Villa-Lobos e outros nacionalistas", recorda.

Para os discos, compôs 25 chorinhos entremeados de diferentes linguagens musicais do Brasil profundo que vão da influência negra às tradições rurais como a viola caipira ("para compor Brejeiro, Ernesto Nazareth foi à viola caipira", lembra) e a sanfona forrozeira num calango dedicado ao forrozeiro Luiz Calango, da cidade de Rialto. Cada faixa pende para um gênero ou personagem importante na evolução das tradições musicais do país. Tudo está sempre ligado com a "música técnica" do Brasil, como o choro é considerado por pesquisadores por ter construído a cultura da escrita musical no meio popular, quando este formalismo só estava disponível na música clássica.

Por ironias só vistas no Brasil, um novo e rico repertório do choro e sua discussão profunda são revisitados por um não-técnico. Carlos Henrique Machado de Freitas compôs tudo sem dominar partituras. E há belas peças entre as 25 faixas, todas gravadas com músicos de Volta Redonda. O projeto animou Freitas e ele agora diz que vai se debruçar em desdobramentos. Parte para estudar a tradição negra disseminada por Pixinguinha e recolhida por Mário de Andrade no livro "Música de Feitiçaria".

Vale dos Tambores
Carlos Henrique Machado de Freitas
Gravadora: independente
Preço médio: R$ 60,00 (frete incluso)
compras pelo site www.carloshenrique.mus.br)

Edson Wander