27.5.07

Companheiro de Ofício

Meus compadres e comadres.

Vai aqui um pouco do trabalho do artista Tancredo da Silva Lima. Este, assim como eu, apresenta-se em público declamando poesias caboclas e contando causos, cuidando para que a chama da nossa cultura popular mantenha-se sempre acesa no coração no nosso povo.

Nós, que vivemos a cultura popular brasileira não encontrando espaço na mídia radiofônica e televisiva (que em maioria esmagadora dissemina produtos de baixíssimo teor artístico e cultural) temos ainda o árduo ofício de lutar contra os sortilégios causados pela ação midiática massificante que anula a referência e o padrão cultural do nosso povo, esteriotipando-lhe as reações e condutas.

Lutamos pela manutenção ou permanência do vínculo com nossa cultura. Lutamos pelo nosso fortalecimento enquanto povo e gene estrutural de uma cultura tão rica. Lutamos contra a bestificação humana.

Há em nós um pouco de Don Quixote, de Macunaíma e Policarpo Quaresma. Mas alegrar, emocionar, refletir e entreter sem alienar são algumas formas do nosso trabalho através do qual buscamos atingir nossos objetivos de não deixar que os massificadores apaguem a chama da nossa cultura popular, enquanto lutamos para tranformá-la numa grande fogueira onde possa queimar e fazer arder todo o lixo cultural que nos é imposto.

E assim, Tancredo da Silva Lima, nosso artista e animador em questão, criou o personagem "Velho Justino" que usa a poesia matuta também para combater o preconceito.


"Anoitecia na Foz do Tejo, e os moradores das diversas comunidades do Alto Juruá se preparavam para dormir. Os motores a diesel eram ligados, acendendo alguns bicos de luz num raio de 1,5 quilômetro. A claridade anêmica espichava sombras no chão.
Da penumbra surgia um velho, negro como a noite, caminhando com a ajuda de uma bengala. Por onde passava, ia descarregando impropérios, e os rostos ao redor eram tomados pela surpresa. Muitos seguiam seus passos, curiosos.

Quando em torno dele se juntava uma multidão de olhos, Justino iniciava seu trabalho teatral, declamando as poesias matutas do mineiro Saulo Laranjeira e dos paraibanos Geraldo Amâncio e Amazan.

As contradições sociais e o abuso de poder são os temas principais de "Conversa de passageiro" e "Viola quebrada", textos recorrentes da apresentação da personagem. No primeiro, um matuto tem a oportunidade de explicar a um "doutor" o estilo de vida dos que moram no campo, desfazendo neste algumas noções preconceituosas.

Trecho de "Conversa de Passageiro"

"Em cada casinha desta
tem dez pessoas ou mais
ali os filhos se somam,
pois suas mães não tomam
anticoncepcionais.

(...)

Só uma coisa é diferente
é que eles tem embaraço
trabalha o senhor com a mente
e eles trabalham com o braço

O senhor num gabinete
que mais parece um palacete
com todo luxo e requinte
pobrezinhos que eles são
não ganham nem um milhão
ganha o senhor mais de vinte".

No segundo, um cantador lamenta a perda da viola, quebrada por um delegado despótico.

Trecho de "Viola Quebrada"

"Eu fico assim assuntando e me alembro de um caso que se assucedeu com João Macambira, quando ele um dia chegando no arraiá, o delegado de polícia, véia formiga que não gosta de cigarra, quebrou a viola de João. E Macambira, com os cacos da viola na mão, assim falou pro assassino de sua grande amiga e véia companheira:

(...)

Seu moço, seu delegado
qué que foi que lhe fiz
pra vosmecê fazê assim?
rebentou minha viola
bateu vinte vezes nimim
o que a pobre da inocente
fez de male, minha gente?
esse farso testemunho
apois quem foi que
levantou?
quem bate numa viola
não está bem certo da bola
bate é no Nosso Senhor!"

As duas histórias são contadas com lirismo e emoção, e aos poucos os risos vão dando lugar à reflexão sobre as desigualdades sociais e o uso desnecessário da força.
Justino declama outras 26 poesias. Mas nem todas são dramáticas como "Conversa de passageiro" e "Viola quebrada". Há quem prefira as confusões hilariantes e escatológicas de "Dieta da farinha".

Por trás das rugas do velho Justino, de sua barba e cabelos brancos, dos membros cansados e sempre dependentes da bengala, está o ator e animador cultural Tancredo da Silva Lima, 36 anos. Há quem não acredite na transformação, de tão realista que é a personagem.

A idéia de criar o "velho" nasceu em 1997, quando Tancredo saiu do grupo do Palhaço Tenorino. O antigo desejo de trabalhar com literatura de cordel e poesia cabocla foi o primeiro passo para a caracterização de Justino.

Nas festas juninas, personagens de ocasião se sucederam até que o último deu uma idéia aproximada do que seria a nova criação. As atividades desenvolvidas por um ano no Projeto Lazer e Cidadania, que reunia idosos da Estação Experimental e outros bairros vizinhos, foi fundamental para que Tancredo definisse voz, postura e gestos do velho Justino.

Mas ainda faltava um detalhe. A mulher do ator, Ana Paula Gonçalves, insistiu para que a pesonagem tivesse barba e bigode. "Descobri que Ana tinha razão, e conclui que estava pronta a minha mais importante criação", diz Tancredo.

Primeiros passos

Em arte todo começo é difícil. Tancredo precisou fazer 19 apresentações gratuitas antes de receber o primeiro cachê. (O valor de cada cachê hoje em dia varia de R$ 50 a R$ 200, e dependendo do cunho social do evento, pode ser gratuita).

Sem remuneração pelo trabalho, ele tinha dificuldades até para comprar a maquiagem que o transformava em Justino.

O desinteresse pela personagem era tanto, que o ator chegou a implorar para fazer uma pontinha num evento do Colégio Aplicação. "Depois da primeira apresentação me encomendaram outras três, só que pagas", conta ele.

No início desse ano, Justino precisou declamar suas poesias na praça Plácido de Castro, em um evento promovido pela Fetacre, e Tancredo sentiu na própria pele a discriminação. "No balcão da Biblioteca Pública o velho foi completamente ignorado, e ao atravessar a rua ninguém se dispôs a ajudar", desabafa ele.

O ator reconhece três preconceitos diferentes contra Justino: pelo fato de ser negro, velho e deficiente físico. Essa constatação deu um rumo diferente à personagem, que segundo ele transcendeu o lúdico para atingir as raias do social. "Com Justino tenho uma grande responsabilidade pedagógica", diz Tancredo.

Daí a preocupação de não fazer do velho um objeto de escárnio. As poesias que declama desempenham papel importante à reflexão da platéia. Tancredo acha que o jovem, principalmente, é tocado pelas mensagens oferecidas por Justino. "Já vi muitos jovens se emocionarem durante as apresentações", diz ele.

Não é à toa que a criatura acabou por modificar o criador. "Justino me tornou mais humano, fez de mim um pai de família mais consciente", conclui o ator.

Extraído do portal "Outras Palavras"