7.5.07

Noel Rosa X Wilson Batista: A histórica polêmica do samba

A polêmica Noel Rosa (1910-1937) X Wilson Batista (1913-1968) durou menos de três anos, mas rendeu músicas interessantes e virou parte do folclore musical brasileiro. Quando o entrevero começou, na década de 1930, o boêmio da Vila já era um respeitado compositor, freqüentador da Lapa, amigo de famosos e com o nome feito no meio radiofônico.

Noel e Wilson: da disputa às homenagens

Já o garoto Wilson ainda era um aprendiz, candidato a malandro e disposto a qualquer coisa para se tornar conhecido. Justamente por isso muitos até hoje não entendem por que Noel começou a rincha.

Wilson Batista, que entraria para a história como um grande sambista da década de 1940, estava apenas começando a carreira quando compôs Lenço no Pescoço. A música foi a sua terceira gravação e, em versos simples, fazia apologia à malandragem:

LENÇO NO PESCOÇO - 1933
(Wilson Batista)

Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio

Meu chapéu do lado...

Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção
Comigo não
Eu quero ver quem tem razão

Meu chapéu do lado...

E ele toca
E você canta
E eu não dou
Ai, meu chapéu do lado...

Por que Noel Rosa teria se importado tanto com a música a ponto de dar a ela uma resposta? Há quem diga que seria por influência de um amigo, chamado Orestes Barbosa. Ele teria escrito: "num momento em que se faz a higiene poética do samba, a nova produção de Sílvio Caldas, pregando o crime por música, não tem perdão". Mais tarde, a música seria censurada pela Confederação Brasileira de Radiofusão, em nome da moralidade e do respeito às autoridades constituídas.

Mas e Noel? O que ele teria contra a figura do malandro? Na verdade, Noel tinha simpatia por ela, que estava presente em muitas de suas músicas. Apenas a influência de Orestes Barbosa talvez não justificasse sua resposta.

Aí é que entra uma versão mais apimentada da história. Wilson Batista havia se engraçado com uma morena, freqüentadora da Lapa e que também teria atraído a atenção de Noel Rosa. Só que os argumentos de Wilson foram mais fortes, e ele ficou com a moça, deixando Noel desapontado e ansioso para revidar na primeira oportunidade. A letra de Lenço no Pescoço era a desculpa que Noel precisava para dar uma lição no moleque atrevido. E com a arma que o poeta melhor sabia manejar: o samba. Assim, Noel compôs Rapaz Folgado, com endereço certo ao seu rival:

RAPAZ FOLGADO - 1933
(Noel Rosa)

Deixa de arrastar o teu tamanco...
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco,
Compra sapato e gravata,
Joga fora essa navalha
Que te atrapalha.

Com chapéu do lado deste rata...
Da polícia quero que escapes
Fazendo samba-canção,
(Eu) Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão.

Malandro é palavra derrotista...
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista.
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado.

Rapaz Folgado só seria gravada em 1938, por Aracy de Almeida, mas já circulava de boca em boca nos meios freqüentados pelos compositores. Todos sabiam que a alfinetada era para Wilson, que não engolia provocações. "Brigar" com Noel era uma excelente chance para ficar famoso. Batendo na caixinha de fósforos e escrevendo a letra em papel de maço de cigarro, Wilson compôs a tréplica logo em seguida, intitulada Mocinho da Vila:

MOCINHO DA VILA - 1934
(Wilson Batista)

Você, que é mocinho da Vila,
Fala muito em violão,
Barracão e outras coisas mais.
Se não quiser perder o nome,
Cuide do seu microfone,
E deixe quem é malandro em paz.
Injusto é seu comentário,
Fala de malandro quem é otário,
Mas falando não se faz.
Eu, de lenço no pescoço,
Desacato
E também tenho o meu cartaz

Considerada fraca na letra e na melodia, a criação de Wilson foi ignorada por Noel, que continuou a escrever sambas sem nenhuma relação com o debate musical. Um desses sambas foi o belíssimo Feitiço da Vila, cuja versão original fora interpretada por João Petra de Barros em 1934:

FEITIÇO DA VILA - 1934
(Noel Rosa - Oswaldo Gogliano [Vadico])

Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos
Do arvoredo
E faz a lua nascer mais cedo!

Lá em Vila Isabel
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba
São Paulo dá café,
Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba!

A Vila tem um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém
Que nos faz bem...
Tendo nome de Princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente
Que prende a gente...

O sol da Vila é triste
Samba não assiste
Porque a gente implora:
Sol, pelo amor de Deus,
Não venha agora
Que as morenas vão logo embora!

Eu sei por onde passo
Sei tudo que faço
Paixão não me aniquila...
Mas tenho que dizer:
Modéstia à parte,
Meus senhores, eu sou da Vila!

Nesta exaltação ao bairro de Vila Isabel, podemos sentir claramente a boemia, tão presente na vida de Noel Rosa e responsável pelo agravamento de sua doença (tuberculose). Na canção, Noel implorava para que o sol não nascesse, pois a roda de samba terminaria e as mulheres iriam para casa. Vale destacar também a beleza da imagem de galhos balançando ao som do samba.

Outra referência interessante é feita à política do café com leite de São Paulo e Minas Gerais. Apesar de a política ter se encerrado em 1930, ela ainda estava bastante presente na memória das pessoas.

No programa Case, da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, Noel criou novos versos para o já sucesso Feitiço da Vila. Esses versos são fundamentais para entendermos a provocação seguinte de Wilson Batista:

Versos adicionais de Feitiço da Vila

Quem nasce pra sambar
Chora pra mamar
Em ritmo de samba.
Eu já saí de casa olhando a lua
E até hoje estou na rua.
A zona mais tranqüila
É a nossa Vila
O berço dos folgados;
Não há um cadeado no portão
Porque na Vila não há ladrão.

Nos novos versos, Noel fez uma volta à infância, não só na referência ao choro pra mamar em ritmo de samba, mas, sobretudo, aos tempos em que a Vila Isabel gozava a má fama de atrair ladrões. Segundo Noel, esse tempo já teria passado, e o bairro podia se orgulhar de dormir sem cadeado nos portões. Nesse momento, Wilson Batista viu uma oportunidade de entrar novamente em ação.

Desde que sua canção Mocinho da Vila fora ignorada por Noel, Wilson Batista estava fora de cena. Ainda fiel ao sonho de ser famoso e sabedor de que nenhum compositor popular brasileiro estava tão em evidência quanto Noel, Wilson não perdeu tempo e escreveu Conversa Fiada:

CONVERSA FIADA - 1935
(Wilson Batista)

É conversa fiada
Dizerem que o samba
Na Vila tem feitiço.
Eu fui ver pra crer
E não vi nada disso.
A Vila é tranqüila,
Porém é preciso cuidado:
Antes de irem dormir,
Dêem duas voltas no cadeado.
Eu fui lá na Vila ver o arvoredo se mexer
E conhecer o berço dos folgados.
A lua nessa noite demorou tanto,
Assassinaram-me um samba.
Veio daí o meu pranto.

Noel não podia ignorar a nova canção. O ajustamento de ritmo e a bela melodia já continham elementos que permitiam antever o grande sambista que Wilson Batista seria. A música era indiscutivelmente bem-feita, e o bairro de Vila Isabel tinha sido debochadamente atacado.

O contra-ataque tinha que ser definitivo, mortal e em grande estilo. Veio na forma de um samba intitulado Palpite Infeliz - um dos mais populares e bem elaborados de toda a obra de Noel.

PALPITE INFELIZ - 1935
(Noel Rosa)

Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também.

Fazer poema lá na Vila é um brinquedo,
Ao som do samba dança
até o arvoredo.
Eu já chamei você pra ver,
Você não viu porque não quis
Quem é você que não sabe o que diz?
Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também.

A Vila é uma cidade independente
Que tira samba mas não quer tirar patente.
Pra que ligar a quem não sabe
Aonde tem o seu nariz?
Quem é você que não sabe o que diz?

Obra-prima da música brasileira, o samba ficaria para sempre na memória do povo e de Wilson Batista. Logo no primeiro verso, Noel chama atenção para o fato de o rival ainda não ser tão conhecido: "Quem é você que não sabe o que diz?".

Mais do que provocativa, Palpite Infeliz também é uma obra integradora, que promove a confraternização do mundo do samba. A canção defende a Vila Isabel com elegância, sem colocá-la acima de Estácio de Sá, Salgueiro ou Mangueira. Para Noel, a disputa estava encerrada. Já Wilson pensava diferente, e a nova resposta veio com um golpe baixo intitulado Frankenstein da Vila. O samba era uma pilhéria com Noel, satirizando a sua feiúra provocada pelo defeito que tinha no queixo, causado por um acidente na hora do parto.

FRANKENSTEIN DA VILA - 1936
(Wilson Batista)

Boa impressão nunca se tem
Quando se encontra um certo alguém,
Que até parece o "Frankenstein".
Mas, como diz o rifão,
Por uma cara feia,
Perde-se um bom coração.

Entre os feios estás na primeira fila,
Eu te batizo "Fantasma da Vila".
Essa indireta é contigo,
E depois não vás dizer
Que eu não sei o que digo.
(Sou teu amigo)

Algumas testemunhas afirmam que Noel não deu importância ao samba, achando até graça do deboche. Outros garantem que a história não foi bem assim. Cícero Nunes, companheiro de muitas cervejadas, jura ter visto Noel chorar ao tocar no assunto. Ainda no mesmo ano, Wilson escreveu Terra de Cego, e cantou o samba para Noel no Café Leitão:

TERRA DE CEGO - 1936
(Wilson Batista)

Perde a mania de bamba
Todos sabem qual é
O teu diploma no samba.
És o abafa da Vila, eu bem sei,
Mas na terra de cego
Quem tem um olho é rei.
Pra não terminar a discussão
Não deves apelar
Para um barulho na mão.
Em versos podes bem desabafar
Pois não fica bonito
Um bacharel brigar.

Noel gostou da melodia, mas pediu para trocar a letra no próprio botequim. Como Wilson também havia andado de namoro com Ceci - uma antiga paixão de Noel Rosa -, a nova letra foi dedicada a ela. Com a música pronta, Noel viveu um "amor de parceria": a mulher era Ceci; o parceiro, Wilson Batista.

DEIXA DE SER CONVENCIDA - 1936
(Noel Rosa - Wilson Batista)

Deixa de ser convencida
Todos sabem qual é
Teu velho modo de vida.
És uma perfeita artista, eu bem sei,
Também fui do trapézio,
Até salto mortal
No arame eu já dei.
(Muita medalha eu ganhei!)
E no picadeiro desta vida
Serei o domador,
Serás a fera abatida.
Conheço muito bem acrobacia
Por isso não faço fé
Em amor, em amor de parceria.

Era o fim de uma briga musical da qual pouca gente tomou conhecimento na época (com exceção do meio artístico). É difícil saber até que ponto Noel guardou alguma mágoa ou ressentimento, principalmente com relação ao samba Frankenstein da Vila. Quanto a Wilson, façamos justiça: não foi por causa da rixa que ele se tornou alguém na vida. Seu tempo chegou pelo próprio talento. Noel faleceu em maio de 1937. A Wilson ficou saudade, respeito e grande admiração.

Antes de morrer, em 1968, Wilson Batista viu a briga com Noel virar disco nas vozes de Roberto Paiva e Francisco Egídio (Polêmica, 1956). O compositor também fez alguns sambas com menções a Noel Rosa. Entre eles, podemos citar Quero um Samba e Terra Boa.

QUERO UM SAMBA
(Wilson Batista - Waldemar Gomes)

Diga para o dono do baile
Que nós queremos sambar
A noite inteira sem tocar um samba
Nem parece que estamos no Rio,
A terra de Sinhô e o berço de Noel...

TERRA BOA
(Wilson Batista - Ataulpho Alves)

Terra de Santos Dumont
Carlos Gomes, Ruy Barbosa,
Grande Duque de Caxias,
Castro Alves, Noel Rosa...


Bibliografia

MÁXIMO, João e DIDIER, Carlos. Noel Rosa, uma biografia. Brasília, Linha Gráfica e UNB, 1990.
CABRAL, Sérgio. A MPB na era do rádio. São Paulo, Moderna, 1996.
Coleção MPB compositores, Noel Rosa. Globo.
Coleção MPB compositores, Wilson Batista. Globo.
Coleção História do Samba, "Capítulo 10". Globo.
Noel Rosa pela Primeira Vez - Discografia Completa. Ministério da Cultura/ Funarte.