16.4.07

Arte e Educação (5)

O QUE O ARTISTA ENSINA?

Em nosso último artigo, iniciamos uma discussão sobre a importância do professor de Arte estar envolvido e desfrutar para si mesmo o universo da arte para que possa com mais compromisso e competência trabalhar esta área do conhecimento. Conversamos sobre o professor-artista, sobre o trabalho pedagógico que não pode excluir ou abafar o trabalho estético e artístico no ambiente escolar.

As respostas, contribuições que recebemos, foram unânimes: “o professor precisa ter seu lado 'artista'”. Com isso, os leitores indiretamente iniciaram um outro debate tão pertinente quanto o primeiro: será que basta ser artista para poder ensinar?

Sem dúvida, são inúmeras as contribuições dos artistas para o aprendizado da arte na escola. Aliás, sem os artistas, não haveria sequer razão para cogitar uma aula de Arte nos currículos. Há pelo menos duas décadas, graças às contribuições de Ana Mae Barbosa e de sua geração de arte-educadores, o ensino de Arte tem sido intimamente ligado ao universo dos artistas, dos “fazedores” de arte.

Criar obras de arte é o papel dos artistas em sociedade, portanto, nada mais significativo do que trabalhar a arte nas escolas relacionadas ao ato de criar. Mas isso só não basta: conhecer e apreciar obras de arte, suas histórias e a dos artistas que as fizeram, seus conceitos estéticos, e, principalmente, relacionar todo esse saber ao cotidiano dos alunos e às suas produções artísticas é dar à arte o tratamento que ela merece: o de área de conhecimento.

As gravuras, vídeos, gravações, livros de e sobre artistas não podem faltar nas salas de aula. “Trazer” os artistas para escola é vital para um processo de construção de conhecimento que se pretenda crítico e transformador. A presença em pessoa do artista na escola por meio de espetáculos, exposições, palestras, demonstrações etc. pode ser também muito rico para o aprendizado dos alunos.

O artista não traz somente o glamour para a escola, ou um jeito diferente de vestir-se, de falar, de andar, de expressar-se. O artista traz principalmente um outro jeito de ver o mundo, de relacionar-se com as pessoas e de compreender as redes de relacionamentos existentes no nosso cotidiano.

Mas são todos os artistas que têm alguma contribuição significativa para compartilhar e contribuir no processo de conhecimento em arte dos alunos na escola?

Quando o artista é trazido em pessoa para a escola, qual o papel dele? O artista que é criador, intérprete, diretor, regente é também automaticamente professor? Talvez seja este um dos grandes equívocos do corpo docente e administrativo das escolas que se “encantam” com a arte – achar que os artistas também têm necessariamente preparo e genuína vontade de ensinar.

Infelizmente, não são raros os artistas que, desamparados financeiramente, buscam o caminho do ensino – nas escolas, nas academias, nas ONGs, nos programas pós-escola. Ou seja, ensinar arte “na escola” tornou-se muitas vezes uma garantia financeira para o artista, um salário garantido todo mês. Assistimos hoje a uma verdadeira “corrida do ouro” de companhias de dança, grupos de teatro, artistas independentes, - outrora sem vínculo nenhum ou sem gosto algum pela educação, - hoje encontrando na escola seu amparo e manutenção.

Como as escolas têm recebido estes artistas? Intimidando-se com seu glamour, apequenando-se com o virtuosismo e segurança pessoal dos artistas? Aceitando ingenuamente o conhecimento que trazem, sem questionamento ou interlocução? Ou será que diretores, coordenadores e até mesmo professores de arte estão conseguindo dialogar positivamente com os artistas em função de seus projetos político-pedagógicos?

Além dos “artistas pobres”, muitas vezes são também os “artistas frustrados” os que buscam a área de ensino. Como não conseguiram realizar-se no sistema da arte, tentam a educação com válvula de escape. Mais uma vez, quantos não são os professores e diretores, sem parâmetros de qualidade artística, que aceitam ingenuamente e glorificam os artistas em sala de aula, abrindo mão de princípios pedagógicos, ou de posturas educacionais significativas? O que se assiste hoje, principalmente nas áreas de arte menos conhecidas pelo universo escolar - como a dança e o teatro - é a uma total falta de referências sobre os princípios educacionais que devem reger o ensino das artes.

Ao passar a peteca do ensino para artistas despreparados pedagogicamente – mas com a segurança e a aparência de profundos conhecedores de arte – a escola corre o sério risco de incidir em processos de ensino-aprendizado totalmente arcaicos, acríticos, reprodutores, ingênuos e, principalmente, desarticulados, baseados muitas vezes apenas nas experiências pessoais do artista. Ou seja, o artista que chega à escola para ensinar no lugar do professor – e não para compartilhar sua arte com os alunos e com os professores – pode estar trazendo a velha e arcaica pedagogia da cópia, da técnica vazia, do virtuosismo, do decorar sem pensar, ou ainda, do 'laissez-faire', da “intuição”, do “deixa rolar”.

Por que será que em geral a escola abaixa a cabeça para a arrogância pessoal e ignorância pedagógica de alguns artistas? Por que em geral não questiona seus métodos, metodologias, posicionamentos diante dos alunos? Por que não solicita projetos artísticos articulados com os projetos da escola? Por que as escolas em geral dão lugar a qualquer arte e a qualquer artista? A falta de professores de arte em todas as linguagens artísticas ou a falta de competência dos professores existentes pode ser uma resposta.

Quando o professor de artes visuais chama o dançarino de hip-hop para trabalhar com seus alunos, ou a quando a pedagoga chama o violeiro para tocar para seus alunos, por não saberem dançar ou tocar, por não terem o domínio do conteúdo específico: não podem intimidar-se ou ter medo de opinar e interferir no aprendizado, ou seja, nas questões pedagógicas do ensino de Arte.

Se não aceitamos mais a cópia de textos na área de Português, por que aceitamos que um artista entre na escola e faça uma coreografia para os alunos copiarem sem que participem e/ou compreendam no corpo aquilo que estão dançando? Se já sabemos quão ultrapassada é a memorização mecânica da tabuada na área de matemática, por que aceitamos que um regente venha para a escola e ensine os alunos a cantar mecanicamente sem entender, sem ouvir, sem perceber a música? Se conhecemos e aprovamos o processo de “ação-reflexão-ação” tão trabalhado por Paulo Freire na sistematização do saber nas aulas, por que não nos importamos quando um artista entra na escola e só trabalha “intuitivamente”?

Há várias respostas possíveis: ou o corpo docente/administrativo menospreza e não se incomoda com a arte na escola, ou ignoram a importância do conhecimento da linguagem da arte na educação de seus alunos. Ou ainda: será que a arte continua sendo uma grande caixa preta que precisa ser aberta, desvelada e, principalmente, conhecida a fundo em suas intersecções com o ensino e com a sociedade? Se estas forem as respostas, cabe aos professores de Arte e aos artistas comprometidos com a educação abrir esta caixa e fazer dela um grande espetáculo na escola.


Isabel Marques e Fábio Brazil, professores e artistas, dirigem o CALEIDOS ARTE E ENSINO em São Paulo, capital, ministrando cursos e prestando assessoria a secretarias de educação, escolas públicas e privadas nas áreas de dança e poesia.

Pescado do Portal Carta Maior