23.4.07

Chico Buarque, o compositor do cotidiano brasileiro

A poética de Chico Buarque tem fortes bases no cotidiano brasileiro. Além de profundo lirismo, o lado mais sombrio do país vira matriz da sua criação musical. Veja artigo da socióloga Irlys Alencar Firmo Barreira para o Diário do Nordeste.

Cartazes espalhados em outdoors e chamadas jornalísticas, indicando a passagem de um dos maiores compositores da chamada MPB, são como lufadas de ar fresco no ambiente conturbado de nossa metrópole. Chico Buarque de Hollanda, trazendo na mala poesia e música, chega com sua banda, "cantando coisas do amor", sem nunca haver esquecido o lado mais sombrio de tudo o que cheira a humano e vira matriz da criação musical.

As canções de Chico Buarque rimam vários sentimentos, evocando desejos, perdas, sonhos, desigualdades sociais e perseguições políticas, com metáforas que saltam do erudito ao popular. Em uma das inúmeras entrevistas concedidas à imprensa, o compositor afirma ser "um cantor de cotidiano", expressão que caracteriza seu trabalho de criação musical: "Tem mais samba no chão do que na lua; tem mais samba no homem que trabalha; tem mais samba no som que vem da rua".

O samba urbano, cheirando a "chaminé e asfalto", diz bem das constantes referências do compositor às vicissitudes da cidade grande, incapaz de acolher, de forma igualitária e com dignidade, as diferentes categorias sociais. Pedro Pedreiro é o símbolo da espera intermitente, do "sem vintém" que espera a sorte, espera o filho e a morte personificando a esperança aflita dos moradores pobres do subúrbio.

SUSSUROS E VERSOS

A fuga ao mundo da ordem aparece inúmeras vezes através da personagem do malandro que faz da vida uma espécie de drible às convenções, unindo boemia e esperteza. Transmuta-se também no malandro de outra classe social com terno, gravata, coluna social e candidato a "malandro federal".

Além das músicas que constituem uma espécie de denúncia à situação de repressão (Apesar de você), observa-se já, em 1976, os sinais da anistia, momento em que a escuridão, para usar uma metáfora do compositor, vai sendo gradativamente substituída por "sussurros em versos e trovas que andam combinando no breu das tocas". É quando os prenúncios da abertura saúdam "O que todos os avisos não vão evitar". Nessa mesma direção, a música Vai Passar, de 1984, representa o símbolo da alegria, da cidade reconciliada com seu povo, convocado a ver "a evolução da liberdade, até o dia clarear".

O cotidiano é também enunciado pela presença de mulheres na criação artística do compositor. Elas são diversas e quase todas trazem a marca de comportamentos tradicionais ou irreverentes. A Carolina, que "nos seus olhos fundos guarda a dor de todo esse mundo"; a Januária, homenageada pela natureza, onde "até o mar faz maré cheia para chegar mais perto dela". A mulher do cotidiano, que "faz tudo sempre igual". Há também muitas mulheres que esperam. A Carolina, que deixou o tempo passar na janela, e as mulheres de Atenas que "tecem longos bordados e mil quarentenas".

OLHOS NOS OLHOS

Algumas letras revelam o surgimento da mulher liberada. Aquela que após viver a rejeição amorosa pode ver, "olhos nos olhos", já refeita pelo tempo e por novos amores.

O amor das canções é feito de muitas rimas e dores, a exemplo da forma simbiótica que não sobrevive à separação, pois "se confundimos tanto as nossas pernas, diz com que pernas eu devo seguir". Em Samba para um Grande Amor, a palavra mentira serve de estribilho e contraponto aos versos românticos que adquirem, assim, a ironia e irreverência.

Amores não convencionais também emergem na música Mar e Lua, que canta as duas mulheres que "amavam o amor serenado de noturnas praias, levantavam as saias e se enluaravam de felicidade...". Amores difíceis (Retrato em Branco e Preto), impossíveis, proibidos e não correspondidos refletem a diversidade das formas de amar - De Todas as Maneiras.

As músicas de Chico são também povoadas de outros personagens que encarnam um cotidiano carregado de reveses. São eles os loucos, a prostituta, os pivetes, os homossexuais e malandros. Uma memória subterrânea dos desvalidos, ou uma espécie de cotidiano de inversões de valores e instituições repõem os outros lados do estigma e da exclusão social. Na música Noite dos Mascarados, a desordem consentida no carnaval, já explorada pelo antropólogo Roberto da Matta, constitui uma espécie de hino desse ritual de transgressão.

RÍTMOS MÚLTIPLOS

A alusão transgressora do sentimento, absoluto em sua entrega, encontra-se também nas notas dissonantes do Choro Bandido, em parceria com Edu Lobo: "Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso / são bonitas as canções / mesmo sendo errado os amantes seus amores serão bons".

O repertório musical de Chico Buarque apresenta um conjunto diversificado de ritmos que incluem valsa, samba, bolero, frevo, tango, etc. Entre eles, a presença forte de um samba que desceu o morro e adquiriu novos tons. Agora letra e música unem-se para completar acordes. Na música Beatriz, por exemplo, a palavra chão vem acompanhada da nota mais grave, enquanto a palavra céu traz a nota mais aguda.

Em algumas composições, letra e música funcionam como repetição onomatopaica de sons que vêm de objetos. A música Pedro Pedreiro torna o refrão, "que já vem", o barulho repetido do trem. A música Acorda, Amor traz em seu arranjo o som semelhante ao barulho da sirene. Também a composição Suburbano Coração, imita, em sua primeira estrofe, o som das badaladas do relógio. Trata-se de um recurso poético-musical já presente em Villa Lobos, na descrição de ruídos de máquinas do Trenzinho Caipira.

Soando como nostalgia, ou carregando elementos de novidade próprios da vida cotidiana, as canções de Chico Buarque trilham a singularidade de um país de múltiplas heranças, tal qual a vida do compositor cantada na música Para Todos: "O meu pai era paulista, meu avô pernambucano, o meu bisavô mineiro, meu tataravô, baiano, vou na estrada há muitos anos, sou um artista brasileiro".

Para além do prazer da escuta, a música pode ser uma das vias de interpretação sociológica que revelam aspectos culturais e linguagens de uma sociedade em determinado tempo histórico. A partir de metáforas originais, o compositor apresenta situações emblemáticas nas quais passeiam personagens, com os dilemas típicos de um mundo que sempre cresce feito "roda viva" e "carrega o destino prá lá".

PELA ÚLTIMA VEZ

A criatividade de Chico Buarque não cessa de fluir, acompanhando experiências e formas atuais de sociabilidade. Em uma de suas últimas composições, poesia e música emergem do encontro efêmero, líquido e fugaz do amor contemporâneo: "Diga que cheguei de leve, não me leve a mal, me leve à toa pela última vez" (Leve, em parceria com Carlinhos Vergueiro). Outra composição, que inicia o CD Carioca, canta o subúrbio das faltas, o lugar que não figura no mapa, onde "até Jesus está de costas" (Subúrbio).

Chico é assim, "um pote até aqui" de lirismo musical, ponto de fuga e encontro com o cotidiano.


Irlys Alencar Firmo Barreira é socióloga e professora titular do Departamento de Ciências Sociais da UFC